Suponha o leitor que fechou um excelente negócio com um comerciante local. Infelizmente, por uma qualquer desgraça daquelas que afeta a vida comezinha, o leitor vê-se na contingência de ser incapaz de pagar ao comerciante o que lhe deve. Para reaver o seu dinheiro, o comerciante pode servir-se de vários meios jurídicos, todos envolvendo a intervenção do Estado que, entre nós, detém o monopólio da coerção.
Mas, por um minuto, imagine que não era assim: assuma que vivíamos num modelo social primitivo e que o comerciante, em vez de ir ao tribunal, podia simplesmente entrar em sua casa e, sem apelo ou agravo, confiscá-la, quiçá açoitá-lo, talvez mantê-lo à sua guarda durante umas semanas, torná‑lo seu escravo, determinar o seu desterro ou bani-lo da comunidade.
Se ficar horrorizado com qualquer um destes cenários, talvez prefira um modelo um pouco mais avançado de sociedade, em que a disputa entre o leitor e o comerciante seria resolvida por um “arbiter”, geralmente um vizinho respeitado, que determinaria o que o comerciante podia fazer para o castigar, tudo à margem dos incipientes poderes públicos.
Este esforço imaginativo, se agora parece deslocado, foi, durante muito tempo, realidade nas civilizações antigas, sendo que o Direito como hoje o conhecemos germina quando começámos a limitar o poder de ação dos particulares e passámos a entregar a resolução dos nossos conflitos a um ente imparcial e isento: os tribunais, órgão de soberania do Estado.
Na verdade, a garantia de um sistema de justiça estadual é, numa comunidade política e juridicamente organizada, a alternativa ao uso da força, pertencendo à fundação da ordem social e sendo um dos mais importantes privilégios da cidadania. O sistema de justiça público representa, pois, o ponto culminante de um processo de evolução civilizacional, levando à institucionalização e racionalização dos conflitos cuja resolução assenta na força e autoridade do Estado de Direito Democrático.
Não deixa, pois, de ser paradoxal que de algumas décadas a esta parte assistamos, com graus de intensidade distinta, a um regresso ao passado, ou seja, a formas de privatização da justiça, de que servem de exemplo alguns meios alternativos de resolução de litígios (MARL), nomeadamente a arbitragem.
Aqueles (e são muitos!) que endeusam a criação e a expansão quase irrestrita dos MARL esquecem que eles são apenas o reverso da moeda das incapacidades e falhas do sistema de justiça estadual. São um retrocesso e uma forma de fragilização e desprestígio dos tribunais do Estado, principalmente naquelas situações em que as pessoas são empurradas para fora do sistema, ficando obrigadas a submeter-se à arbitragem (seja no domínio tributário, administrativo, do consumo, do desporto ou da propriedade industrial), sempre em nome de mantras como a especialização, a flexibilidade, a eficácia ou a celeridade.
A crescente privatização dos tribunais é, ademais, um truque usado para varrer para debaixo do tapete a real dimensão dos problemas do sistema judiciário, arredando-se das estatísticas das pendências milhares de litígios que são (até contra a vontade dos envolvidos!) desviados para os MARL.
No primeiro trimestre de 2022, segundo dados da DGPC, estavam pendentes nos tribunais administrativos e fiscais, apenas na 1.ª instância, quase 59 mil processos, a maioria na área tributária, com uma média (em 2021) de 50 meses até que fosse proferida uma sentença, sem contar com os recursos. Estes números seriam bem piores se, por exemplo no domínio administrativo e fiscal, não existisse o Centro de Arbitragem Administrativa (CAAD).
Não obstante o esforço que o legislador faz para revestir os processos que correm nos tribunais privados de garantias processuais aparentadas aos da justiça estadual, a verdade é que um árbitro não é um juiz. Por mais garantias de isenção e independência que a lei queira estabelecer, o seu posicionamento não é equiparável à da magistratura, pela própria natureza do sistema.
Se a imparcialidade é uma das formas de legitimação de qualquer decisão, é essencial assegurar que a justiça (pública ou privada) não é permeável a pressões internas e externas. Mas o campo para a cedência aos grandes e silentes interesses é bem mais extenso nas formas privadas de justiça, até porque os mecanismos de controlo são débeis.
Por outro lado, a aposta nos MARL representa um perverso ciclo autofágico: o crescente recurso à justiça privada leva ao desvio de fundos da justiça estadual (porque menos processos conduzem a menos juízes, funcionários e tribunais), o que por sua vez piora a perceção e a confiança dos cidadãos no sistema e os empurra para os mecanismos alternativos.
Não significa o que se vem dizendo que somos contra os MARL: eles podem e devem conviver com o sistema dito tradicional, mas com moderação e parcimónia, não se ultrapassando uma linha vermelha em que o arbitral vá, paulatinamente, invadindo e tomando conta do core do sistema judicial. O atual estado de coisas espelha a falta de imaginação de um legislador que em vez de resolver os muitos problemas que lhe surgem, cria outros mascarados de solução.
Em vez de acabar com a justiça pública, é preciso dotá-la urgentemente dos meios e dos recursos necessários para que possa cabalmente desempenhar o seu papel no seio de uma sociedade democrática. Caminhar no sentido da privatização da justiça é colocar em risco um dos pilares fundamentais das modernas democracias liberais e regressar à lei do mais forte.
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