Opinião

Fiscalizar a Europa em tempo de crise

Fiscalizar a Europa em tempo de crise

Henrique Burnay

Consultor em Assuntos Europeus

Na crise das dívidas soberanas, na resposta à pandemia e, agora, na reacção à guerra na Ucrânia e aos seus efeitos, a União Europeia ganha poderes e competências. Isso não significa que esteja a ser mais fiscalizada. Mas devia

Dias depois do discurso do estado da União do ano passado, o gabinete de Ursula von der Leyen foi contactado por representantes de reformados e idosos, para saber se a presidente tinha alguma coisa contra os velhinhos europeus. Segundo estes representantes da terceira idade, em 2021, o discurso em que a líder da Comissão Europeia antecipa os grandes desafios e apostas da sua equipa para o ano seguinte tinha falado muito dos jovens, mas quase nada dos mais velhos, e isso preocupava-os, porque o costume é não faltar nada naqueles discursos. Incluindo os interesses eventualmente divergentes de novos e velhos. É, ou tem sido, da natureza da União Europeia.

A ideia de que as decisões de Bruxelas são fruto da vontade de uns burocratas escondidos em gabinetes com mais ou menos janelas conforme o seu nível hierárquico (esta parte das janelas é genericamente verdade) e pouco sujeitos a escrutínio é um mito que se mantém por uma estranha coincidência de interesses diferentes.

Na verdade, a política e legislação europeias são, de facto, propostas pela Comissão Europeia. Mas são o resultado de discussões com entidades externas, reuniões com Estados membros e leitura de sinais do Parlamento Europeu. Mas, mais importante que isso, são o resultado da vontade acordada entre os 27 membros do colégio de comissários (um por cada país, incluindo a presidente da Comissão, e de vários grupos políticos, conforme os governos em funções nos países de onde vêm os comissários, à data em que são nomeados). Depois disso, as propostas são mastigadas pelos representantes dos 27 governos nacionais, de um lado, e pelos 705 deputados ao Parlamento Europeu, do outro. E, no final, esta gente toda tem de se pôr de acordo.

O que torna a política europeia maçadora e previsível não é a burocracia, é a contínua negociação e a inevitável propensão para o compromisso, num modelo em que não há governo e oposição, mas antes múltiplas partes interessadas cujas posições têm de ser aproximadas. O que a faz pouco escrutinada é outra coisa.

Este ano, além dos interesses específicos dos velhinhos, e apesar de ter apresentado uma lista razoável de iniciativas, Ursula von der Leyen deixou muita outra coisa de fora. Não tanto por ter menos propostas potencialmente consensualizáveis para apresentar nos próximos doze meses, mas porque o papel da União Europeia está a mudar e o discurso reflectiu essa mudança.

É costume dizer-se, sobretudo em Bruxelas, que a “Europa” avança de cada vez que passa por uma crise. O que isto de facto tem querido dizer é que de cada vez que o avanço e aprofundamento da União Europeia (e tudo o que lhe antecedeu) sofre um revés, a resposta europeia tem acabado por ser um salto em frente, com aumento de competências, poderes e responsabilidades. As crises internas da União Europeia têm-na reforçado e aprofundado.

O que se passou nos últimos anos, e muito especialmente em 2022, é diferente. Nos últimos tempos, as crises que a Europa tem enfrentado são (pelo menos em grande parte) cada vez mais externas.

A crise das dívidas soberanas, que foi uma crise na zona Euro, foi uma crise interna, mas também fruto das circunstâncias internacionais. E a resposta reforçou as Instituições Europeias (mesmo que lhes possa ter afectado a reputação nos países resgatados). O Semestre Europeu e a ideia de prestação de contas entre os Estados membros começou aí. Assim como a criação de mecanismos europeus de resposta a futuras crises financeiras internas.

Depois disso, a Pandemia foi um enorme salto em frente na adaptação da natureza e do que é esperado da Europa pelos cidadãos europeus. Ainda que nada, da resposta hospitalar à compra de vacinas, fizesse parte das competências da União Europeia, houve uma percepção generalizada de que a Europa teria de ter uma resposta comum “ou então - como se disse à época - não serve para nada”.

O que se está a passar com a guerra na Ucrânia vai na mesma direcção. A agressão russa foi maioritariamente percebida, de Helsínquia a Lisboa, como uma ameaça à Europa - como Von der Leyen disse, e bem, no discurso do Estado da União -. E embora no campo da segurança e defesa isso tenha implicado o reforço da NATO, no resto, é a Europa que se tem reforçado. A ideia de que a reacção à pressão sobre o preço e a escassez da energia implica uma resposta europeia não estava escrita nos Tratados. Nem na História. É o resultado da dinâmica da resposta à crise, que tem tido na presidente da Comissão Europeia uma das principais lideranças.

O que isto significa, é que os desafios externos, mais até do que argumentos tipicamente internos como o funcionamento do mercado interno ou a força europeia nas negociações comerciais internacionais, têm levado a Europa a ganhar relevância e, consequentemente, poder. Mesmo sem ser necessário mudar quaisquer Tratados.

O que isto deveria significar, é que aquilo que as Instituições Europeias fazem precisa de ser muito mais escrutinado. E a europeização de muitas políticas tem de ser questionada. Para alguns, isso resolve-se com mais poderes para o Parlamento Europeu. Para outros, isso implica, pelo menos também, maior atenção dos parlamentos e das opiniões públicas nacionais.

Se o que se decide em Bruxelas, não fica em Bruxelas, o que se diz em Bruxelas também não pode ficar.

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