Opinião

O Presidente consorte

O Presidente consorte

Rui Rocha

Deputado e membro da Comissão Executiva da Iniciativa Liberal

É como se, olhando para o Reino Unido, estivéssemos num cais onde, ladeados por um primeiro-ministro inebriado pela maioria absoluta e por um Presidente que optou por se entregar nas mãos do líder do executivo, assumindo o papel de seu consorte, víssemos a credibilidade das nossas principais figuras de Estado e das nossas instituições a afastar-se no horizonte. Até a perdermos de vista

Decorrida uma semana sobre o anúncio do “pacote anti-inflação” por António Costa, os factos falam por si. Aquilo que foi propagandeado como um apoio extraordinário aos pensionistas era, na realidade, como o próprio primeiro-ministro acabou por reconhecer na entrevista desta segunda-feira à TVI/CNN, um corte de dois mil milhões de euros nas pensões. E o que foi apresentado como uma descida do IVA da eletricidade para 6% corresponde, afinal, a uma poupança mensal, no melhor dos casos, de pouco mais de um (!) euro, mantendo-se a taxa de 23% nos consumos acima de 100 kWh.

Assistimos, portanto, a uma tentativa descarada, e já completamente desmascarada, de enganar os portugueses. Alguns comentadores têm salientado, para sublinhar a gravidade do comportamento de António Costa, que Pedro Passos Coelho, pelo menos, comunicou com transparência os cortes que foram decididos durante a intervenção da troika. Todavia, a boa comparação nem sequer é essa. A verdade é que o próprio José Sócrates transmitiu ao país com clareza decisões como o corte de salários da Função Pública, o congelamento de pensões ou a redução de apoios sociais. Isto é, Costa conseguiu fazer pior do que Sócrates em matéria de transparência e lisura de comunicação.

Face a este gravíssimo comportamento institucional, Marcelo Rebelo de Sousa mantém-se igual a si próprio, incapaz de exigir um comportamento digno e leal do primeiro-ministro em relação aos portugueses. O mesmo Presidente da República que, para dar apenas alguns exemplos, se apressou a declarar que “se fez tudo o que poderia ser feito” após a tragédia de Pedrógão Grande, que aprovou as 35 horas na Função Pública na condição de que tal não implicasse “aumento de custos” e que desvalorizou a recente crise das urgências afirmando que se tratava de um problema pontual num “fim de semana prolongado”, correu agora para assegurar a “promulgação precoce” – feliz formulação de Ricardo Araújo Pereira – do famigerado pacote, não cuidando de exigir a António Costa, quando menos, que dissesse a verdade ao país.

Mais uma vez, Marcelo Rebelo de Sousa prescinde de uma magistratura de rigor, ainda mais necessária num contexto extremamente exigente e num cenário de maioria absoluta, prestando-se a um papel que acaba por converter a Presidência no carro-vassoura (do regime?) que ampara os sucessivos erros da governação e encobre a relação cada vez mais difícil de António Costa com a verdade.

Nos últimos dias, as televisões nacionais dedicaram centenas de horas de emissão ao acompanhamento dos momentos finais da vida de Isabel II e às cerimónias que se lhe seguiram. De entre as várias razões que podem ser apontadas para justificar o interesse que os portugueses parecem dedicar a acontecimentos que dizem respeito, em primeira linha, ao Reino Unido e à Commonwealth, agrada-me pensar que este resulta também do reconhecimento de um fenómeno associado a uma certa imagem de dignidade que, independentemente da opinião sobre sistemas de governo de cada um, Isabel II projetava sobre as instituições britânicas.

A ser assim, é como se, olhando para o Reino Unido, estivéssemos num cais onde, ladeados por um primeiro-ministro inebriado pela maioria absoluta e por um Presidente que optou por se entregar nas mãos do líder do executivo, assumindo o papel de seu consorte, víssemos a credibilidade das nossas principais figuras de Estado e das nossas instituições a afastar-se no horizonte. Até a perdermos de vista.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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