Opinião

Cumprir a lei de Vieira da Silva rebenta com a Segurança Social?

A direita teve sempre sobre este tema, de forma mais assumida ou mais mitigada, uma tese: o atual sistema não é sustentável; e uma estratégia para lhe responder: seria preciso congelar atualizações e cortar pensões. António Costa acaba de recuperar ambas, ao invocar os mesmos perigos e ao avançar com a mesma suspensão da lei de Vieira da Silva

A sustentabilidade da segurança social é uma condição fundamental da existência de um sistema público e confiável de proteção. Infelizmente, o modo como o tema tem sido mobilizado no debate público é quase sempre oportunista: usa-se quando dá jeito e para o que dá jeito.


Agitar o fantasma de uma alegada insustentabilidade iminente do sistema tem sido há anos o método da direita. Ao minar a confiança das pessoas na capacidade do sistema público, este discurso pretende justificar cortes no imediato e abrir o campo às propostas de privatização parcial, em que quem tem mais dinheiro canaliza uma parte dos seus descontos para o sistema financeiro.


Contra essa ofensiva, chegou-se a um entendimento à esquerda em 2015: a sustentabilidade garantir-se-ia com mais e melhor emprego (essencial para haver receita), com combate à evasão contributiva e à precariedade (para que mais empresas contribuam e mais trabalhadores estejam protegidos), com regularização do trabalho clandestino e com novas fontes de financiamento. Em suma, concordou-se que não era cortando pensões nem congelando a lei de atualização que se podia garantir a sustentabilidade (como haviam feito o PSD e o CDS), nem tampouco mudando a taxa social única (como aqueles partidos também tentaram, sem sucesso). Apesar das divergências em várias outras matérias neste campo, era uma base de entendimento decente. E o sistema equilibrou-se com essa orientação.


Em julho passado, a receita da Segurança Social era superior às despesas em 2,5 mil milhões de euros. Particularmente importante tem sido o aumento em contribuições de empresas e trabalhadores (mais 1,6 mil milhões face ao mesmo período de 2021). A sustentabilidade foi garantida pelo crescimento do emprego e das quotizações, pela recuperação de rendimentos no pós-2015 e foi reforçada noutra dimensão: pelas novas fontes de financiamento criadas.


Desde 2017, o chamado “imposto Mortágua” (o adicional ao IMI sobre o património de luxo, que reverte para o Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social) tem trazido cerca de 150 milhões de euros por ano para o sistema. No período da “geringonça”, também se consignou uma parte do IRC (2% agora) à Segurança Social, o que permitiu reforçar o seu financiamento em cerca de 1000 milhões entre 2019 e 2021. Com todas estas medidas, a capacidade do Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social foi prolongada em 20 anos. E este caminho podia ser reforçado, por exemplo, com uma contribuição de 0,75% sobre o valor acrescentado bruto das grandes empresas (poupando as micro e as pequenas, e compensando o facto de haver empresas com enormes lucros mas poucos trabalhadores pelos quais contribuem).


Não desapareceram nos últimos anos, até se acentuaram, desafios cruciais para o sistema, como o envelhecimento (Portugal é dos países que envelhece mais rapidamente na Europa), ou as transformações na estrutura produtiva (nomeadamente a robotização). Mas a sustentabilidade da Segurança Social não depende de decisões isoladas sobre a atualização das pensões no próximo ano. Tem de ser analisada tendo sempre em conta, de forma integrada, três dimensões: o fator demográfico (que inclui a esperança média de vida, a evolução da natalidade mas também o saldo migratório), os fatores económicos (crescimento, criação de emprego, níveis salariais) e os mecanismos de funcionamento e de financiamento do próprio sistema (contribuições, base de incidência, regras das pensões, idade de reforma, fontes de financiamento). Os fatores que, no passado, mais desequilibraram a sustentabilidade da Segurança Social resultaram de escolhas de política económica: aumento do desemprego (menos contribuições e mais despesa social), precariedade (que atira pessoas para fora do sistema), baixos salários (a que correspondem baixas contribuições, incapazes de garantir pensões decentes) e emigração (que levou no período da troika meio milhão de pessoas para fora do país).


A direita teve sempre sobre este tema, de forma mais assumida ou mais mitigada, uma tese: o atual sistema não é sustentável; e uma estratégia para lhe responder: seria preciso congelar atualizações e cortar pensões. António Costa acaba de recuperar ambas, ao invocar os mesmos perigos e ao avançar com a mesma suspensão da lei de Vieira da Silva, anunciando o corte para metade do aumento de 2023 que resultaria da atualização com as regras em vigor. Ufano com a sua maioria absoluta, deu ainda o dito por não dito, porque no final de junho, quando já sabíamos que a inflação estava em alta há meses e não dava sinais de baixar, declarou solenemente que iria respeitar a lei que atualiza as pensões de acordo com a inflação. Ao dizer agora que a lei de Vieira da Silva, a que jurara fidelidade em junho, afinal não serve, corta na base das pensões futuras e abre a porta a uma alteração estrutural do sistema, sem clarificar o alcance dessa transformação e usando como biombo uma comissão nomeada para “estudar a sustentabilidade” que, quando foi criada, não tinha indicação desta posição do governo nem nenhum mandato relativo às fórmulas de atualização de pensões em 2024 - coisa que agora, por conveniência, se sugere que terá.


À direita serve que nem uma luva a retórica de Costa: afinal o espectro da insustentabilidade, tão caro aos profetas do mercado, andava mesmo aí, alegam, e a solução será empobrecer os pensionistas. Mais uma vez, Costa e a ministra do trabalho mobilizam o tema da “sustentabilidade” de forma errática e instrumental, como já tinham feito em debates anteriores, avançando números e cenários cujas contas não são apresentadas (cumprir a lei Vieira da Silva “retiraria 13 anos de vida ao sistema”) e moldando o conceito em função das suas escolhas conjunturais e das necessidades discursivas do momento, recorrendo a truques de retórica, a cortinas de fumo e à falta de transparência sobre o que se quer fazer no futuro. Tudo lamentável neste processo.

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