Opinião

Os homens precisam de enfrentar a misoginia de Bolsonaro

Andre Pagliarini *

Bolsonaro insiste que não fez nada de errado, que não é machista porque ama a sua mulher. Deveria ser óbvio que este é um padrão lamentavelmente inadequado. Os homens brasileiros enojados com a misoginia de Bolsonaro devem encontrar outro candidato para apoiar. As mulheres já o fizeram, apoiando Lula em vez de Bolsonaro com uma diferença de vinte pontos percentuais numa sondagem realizada antes do debate

Os principais candidatos à presidência do Brasil reuniram-se há pouco tempo para o primeiro debate da campanha de 2022. A corrida tem sido notavelmente estável até ao momento, com o antigo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva a liderar todas as sondagens realizadas este ano contra o atual Presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro. O evento, que era aguardado com expectativa, foi assim visto como uma das poucas hipóteses reais de uma mudança dramática nos contornos da campanha.

À medida que os candidatos se enfrentaram entre si de formas previsíveis, com as suas respostas igualmente ensaiadas, a discussão mais memorável da noite foi entre o Presidente e uma jornalista. Começou quando Vera Magalhães da TV Cultura fez uma pergunta a Ciro Gomes, antigo governador do Ceará, sobre um declínio alarmante nas taxas de vacinação contra doenças como a poliomielite, sarampo e tuberculose, especialmente tendo em conta que o Brasil havia sido, no passado, um líder mundial na imunização de base ampla. A jornalista perguntou: "Em que medida o senhor acha que a desinformação sobre vacinas, difundida inclusive pelo Presidente da República, pode ter contribuído? Além de agravar a pandemia da covid-19 e causar mortes que poderiam ter sido evitadas também para desacreditar quanto à eficácia das vacinas em geral?". Ciro respondeu, colocando a cobertura vacinal intermitente num contexto mais amplo de má gestão federal, empobrecimento económico e polarização na presidência de Bolsonaro. Dada a oportunidade de responder, Bolsonaro optou por não abordar a poderosa crítica de Ciro. Em vez disso, olhou fixamente para a jornalista e exaltou-se: "Vera, não podia esperar outra coisa de você. Eu acho que você dorme pensando em mim, você tem alguma paixão por mim. Você não pode tomar partido em um debate como esse, fazer acusações mentirosas a meu respeito. Você é uma vergonha para o jornalismo brasileiro, mas tudo bem".

A ascensão de Bolsonaro trouxe consigo uma série de consequências lamentáveis. Uma delas tem sido um ressurgimento reacionário da misoginia numa sociedade ainda dominada por expectativas e suposições patriarcais. Embora o Presidente tenha tentado convencer as mulheres de que as suas políticas que facilitam a posse de armas pelos brasileiros comuns ajudarão a mantê-las seguras, desde o ano passado, 96% de todas as novas compras de armas de fogo sob o regime de Bolsonaro foram feitas por homens. Este facto tem revelado consequências trágicas. Como Alvaro Gribel observou após o debate de domingo, "Bolsonaro se referiu à pequena queda dos feminicídios de 0,89% em 2021. Mas se esqueceu de dizer que em 2019 houve um crescimento de 8,22%, seguido de nova alta de 1,8%, em 2020. No acumulado, [um aumento de] 9,1% em três anos." A questão não é que a misoginia de Bolsonaro seja novidade. O Brasil permanece profundamente conservador em muitos aspetos, com violência frequentemente dirigida contra mulheres e pessoas LGTBQ. Esse sexismo, no entanto, é particularmente perigoso, quando ostentado de forma tão imprudente pelo chefe de Estado.

Não é por acaso da história que Bolsonaro, um homem que põe em causa as instituições democráticas do Brasil e a capacidade de realizar eleições livres e justas, dado que não está à frente nas sondagens, se tornou uma figura de relevância nacional durante o "impeachment" de Dilma Rousseff, a primeira mulher Presidente do país. No passado, disse que depois de ter quatro filhos, deu "uma fraquejada" e finalmente teve uma filha. Disse a um membro do Congresso que não a violaria porque ela não o merecia e disse que, se ela lhe batesse, ele lhe batia de volta. Em suma, Bolsonaro representa as normas sexistas, sem qualquer tipo de desculpa, que há muito moldaram a vida brasileira. Há várias estatísticas que sugerem que a presença de Bolsonaro no palco nacional agrava os instintos mais sombrios e retrógrados dos homens brasileiros em relação às mulheres e às pessoas LGBTQ. Derrotar Bolsonaro deve, portanto, servir como uma demonstração de apoio às instituições democráticas do Brasil, bem como um claro repúdio pelas suas atitudes injuriosas sobre as relações de género. Os homens brasileiros têm um papel especial a desempenhar nestas últimas.

Quando Ciro tentou responder à tirada de Bolsonaro contra Vera Magalhães, o Presidente caiu-lhe em cima e disse que não tinha pedido a sua opinião. O Presidente passou então a criticar o desempenho legislativo de uma das duas mulheres em palco de debate, a senadora Simone Tebet, que alcançou um lugar de prestígio nacional depois de participar, de forma veemente, numa investigação oficial sobre a forma como Bolsonaro lidou com a covid-19. "Não estou atacando mulheres, não", acrescentou Bolsonaro, aparentemente consciente de como os seus ataques se estavam, de repente, a manifestar. "Não venha com a história de se vitimizar. Vera, você realmente foi fantástica, não é? Deu oportunidade para falar um pouco de verdade sobre você”, concluiu, com um sorriso irónico e um ajeitar das suas folhas.

O debate prosseguiu, mas ficou claro de imediato que este seria o momento da noite a ficar na memória das pessoas. Todos os candidatos do sexo masculino criticaram a misoginia de Bolsonaro e mostraram a sua solidariedade à jornalista ofendida, mas as duas mulheres senadoras candidatas à presidência foram particularmente incisivas no ataque ao Presidente a partir desse momento. Tebet perguntou diretamente ao Presidente qual é o problema dele em relação às mulheres, ao que Bolsonaro respondeu que ama a primeira-dama. A senadora Soraya Thronicke, que apoiou Bolsonaro em 2018 e concorreu ao senado no mesmo partido que ele há quatro anos, chamou a atenção para o facto de o Presidente falar de modo mais duro com as mulheres do que com os homens. O erro de Bolsonaro foi claro: perdeu o controlo do seu temperamento depois de ter sido desafiado por uma jornalista, realçando assim a sua reputação de ser um machista de cabeça quente.

A misoginia de Bolsonaro não é particularmente invulgar, no Brasil ou em qualquer outro lugar. Um estudo da ONU de 2020 examinou dados de 75 países e concluiu que "quase metade dos inquiridos sentem que os homens são líderes políticos superiores, enquanto mais de 40% acreditam que são melhores administradores de empresas e que têm mais direito a empregos quando a economia está mais lenta. Além disso, 28% pensam que se justifica que um homem bata na sua mulher". Estes números são deprimentes e os homens – como eleitores e como líderes – têm de encará-los e trabalhar para os desconstruir.

Ao tentar defender-se em palco, Bolsonaro recordou comentários feitos por Ciro Gomes numa corrida presidencial anterior sobre o papel da sua mulher na campanha ser apenas para dormir com o candidato (a então esposa de Ciro repetiu durante anos que ele pediu imediatamente desculpa pelas observações, que ela aceitou). A resposta de Ciro a Bolsonaro foi sensível e astuta do ponto de vista político. Essas observações, que foram uma "infelicidade" foram o produto de "alguém criado em ambiente machista, [que] reproduziu cultura machista." E prosseguiu: "Mas eu aprendi isso, mas você não aprende nada nunca. É uma pessoa que não tem coração." É encorajador que Lula e Ciro, candidatos do sexo masculino de uma certa idade com alguns dos seus próprios comentários misóginos no passado, tenham ambos enfatizado a sua indignação e crescimento em matéria de relações de género. Mais homens precisam de se apresentar para denunciar a petulância desdenhosa de Bolsonaro para com as mulheres, particularmente as afro-brasileiras e indígenas que mais sofreram no contexto do quadro social, político e económico de exclusão que Bolsonaro tem consolidado no seu mandato.

Bolsonaro insiste que não fez nada de errado, que não é machista porque ama a sua mulher. Deveria ser óbvio que este é um padrão lamentavelmente inadequado. Os homens brasileiros enojados com a misoginia de Bolsonaro devem encontrar outro candidato para apoiar. As mulheres já o fizeram, apoiando Lula em vez de Bolsonaro com uma diferença de vinte pontos percentuais numa sondagem realizada antes do debate. É pouco provável que o debate altere radicalmente o terreno da campanha. Poderia, no entanto, acabar com qualquer esperança que Bolsonaro tivesse de convencer os eleitores de que não é um machista de primeira linha – e um perigo para as mulheres brasileiras.

* Andre Pagliarini é professor assistente de História no Hampden-Sydney College, colunista no Brazilian Report e professor universitário no Washington Brazil Office

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