Opinião

A Rainha morreu. Longa vida ao Rei

Pelos padrões de popularidade actuais, o legado de Isabel II talvez tenha sido fraquinho: Isabel II em 70 anos conseguiu menos selfies do que aquelas que o nosso Presidente da República consegue em 70 minutos. Carlos pode apontar para o meio. Mas com menos opiniões sobre tudo

Lamento o desengano: o que nos últimos dias temos visto em Inglaterra, a propósito da morte de Isabel II e da coroação de Carlos III não é um conto infantil, nem uma bizantinice folclórica. O que temos visto até pode ter o seu quê disso, concedo, mas tem subjacente uma dimensão política vital à vida em sociedade: a importância da tradição, do rito e do simbólico.

E se isto é importante em todos os regimes, é absolutamente essencial nas democracias. Porque são as democracias o território próprio das dissensões. E são as dissensões, ainda que exercidas em liberdade e sob a Lei, que mais potencial apresentam de erodir a coesão da comunidade política. Dissensão e coesão: eis o equilíbrio indispensável e dramaticamente difícil de assegurar na vida política.

Voltando à Ilha: interpelou-me muito - sem surpresa, mas com arrebato - o pesar colectivo e universal que se começou a manifestar quinta-feira passada, quando todos pressentimos, antes de sabermos, que a Rainha Isabel II tinha morrido. Um pesar profundo acompanhado de intensas manifestações de carinho vindas de todos os cantos, de todas as culturas, e de todas as classes.

E, cruzando estas duas ideias - o equilíbrio entre dissensão e coesão e o que temos assistido em directo da Monarquia britânica - vale a pena viajarmos no tempo: até 1953, data da coroação de Isabel II. Nesse dia, Winston Churchill dizia tudo: “A era do cavalheirismo não está morta. Aqui está uma Senhora que respeitamos porque é a nossa Rainha e amamos pela pessoa que ela é”.

Por que é que dizia tudo? Porque encerra três dimensões essenciais para a avaliação do seu legado: a questão do tempo de longa duração; o cargo; e a pessoa. Três dimensões que são essenciais na avaliação de um Chefe de Estado; mesmo numa República, mas absolutamente indissociáveis numa Monarquia (salvo raras excepções, mas não é isso que nos traz aqui).

Não vale a pena, nesta altura, ainda para mais tão pouco tempo passado sobre o Jubileu de Platina, discorrer novamente sobre o tempo. Mas vale a pena, a propósito do legado da Rainha Isabel II e do encargo do Rei Carlos III, tratar ainda do cargo e da pessoa.

Ao fim de 70 anos, é certo que sabemos muito da pessoa que foi Isabel: sabemos por exemplo que gostava muito de animais, que era muito escrupulosa na gestão das emoções, que era amiga do urso Paddington. Mas não sabemos quase nada acerca das suas opiniões sobre os temas do dia: não fazemos ideia o que é que pensava sobre o Brexit, sobre os windfall taxes, ou sobre o modelo de gestão do NHS (o SNS lá do sítio). Porque não é desejável: porque esses são os assuntos da dissensão e basta ver uma sessão nos Comuns para perceber quanto o fazem. O que é desejável é que a Rainha - e agora o Rei - sejam britânicos por definição e agregadores por missão: que cumpram a função da coesão.

Achar, como republicanamente se usa fazer por cá, que o Rei é um político é um erro elementar. Os políticos fazem política, mas aos monarcas cabe ser, para usar palavras que outros já usaram, os representantes do mistério da comunidade política. E é precisamente por isso que comecei por falar de tradição, rito e simbólico. Porque, repito reformulando: a dissensão é o motor da democracia e a coesão a essência das Nações e dos Estados; aos partidos, à sociedade civil e aos cidadãos cabe a primeira, ao Rei cabe a segunda.

Mas se comecei a falar na pessoa e me precipitei a falar no cargo, onde é que fica a pessoa? A pessoa é absolutamente essencial, porque é a pessoa o vértice mais volátil deste triângulo (tempo, cargo e pessoa). Se a autoridade do cargo, e a reverência que esta concita, obriga ao distanciamento, a democracia - e o tempo presente - exige a proximidade. E, contudo, essa proximidade não pode ser feita mergulhando nos assuntos do dia, com opiniões que são próprias do território da dissensão, sob pena de comprometer a coesão.

O legado de Isabel II foi o de um equilíbrio quase perfeito entre a dimensão simbólica e ritualística da coesão nacional e da dissensão legítima e desejável da democracia. O encargo de Carlos III é, portanto, enorme.

Para começar, não esperem de Carlos - e não o incitem - o que não é suposto esperar de um Rei, para depois o virem acusar de fazer o que não deve.

Como fazer isto, então, num tempo de fortíssima pressão mediática? Num registo mais jocoso, mas com todo o respeito pelos citados, talvez Carlos possa ficar entre o exemplo de sua mãe e o do Chefe de Estado do país que tem com Inglaterra a mais antiga aliança da história, Marcelo Rebelo de Sousa. Falo de quê? Pelos padrões de popularidade actuais, o legado de Isabel II talvez tenha sido fraquinho: Isabel II em 70 anos conseguiu menos selfies do que aquelas que o nosso Presidente da República consegue em 70 minutos. Carlos pode apontar para o meio. Mas com menos opiniões sobre tudo.

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia.

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