Os ataques aos artistas que atuam na Festa do “Avante!" vieram dos que mais se queixam da cultura de cancelamento. O PCP era tratado com bonomia. Mudou depois de quatro anos de “geringonça” e do bloqueio da direita, que precisa do Chega para governar. É preciso alimentar falsas equivalências. E a Ucrânia foi a oportunidade
A Festa do “Avante!” provoca indignações sazonais. Na pandemia era porque sendo um festival como os outros devia ser interditado. Este ano, é porque sendo um acontecimento político como os outros, quem lá atua é cúmplice de Putin.
Ironicamente, a cruzada foi lançada há uns meses por José Milhazes, que, como militante do PCP, viveu na URSS, tendo descoberto a natureza do regime quando ele desmoronou. Por experiência própria sei que as pessoas mudam de opinião, mas nunca lidarei bem com o moralismo agressivo dos convertidos. Os subsequentes ataques aos artistas vieram dos que mais se queixam da cultura de cancelamento. Claro que a participação na Festa do “Avante!” é, para além de um momento cultural, um ato político. Mas nunca significou um apoio a todas as posições do PCP, que incluíram conivência com algumas ditaduras.
Apesar da vitimização, o PCP não tinha grandes razões de queixa do tratamento mediático desde a chegada de Jerónimo de Sousa à liderança. Não tem grande espaço no comentário, é verdade, mas a comunicação social tratava os comunistas com bonomia, respeito pelo seu passado e até paternalismo. Não consta que, nesse momento, as posições do PCP fossem diferentes das de hoje.
Mas as coisas mudaram depois de quatro anos de “geringonça” e do bloqueio da direita, que agora depende de entendimentos semelhantes com o Chega para reconquistar o poder. Como os discursos xenófobos de Ventura não facilitam a sua normalização, é preciso alimentar falsas equivalências com os partidos mais à esquerda. Num país que conheceu uma ditadura de direita, o trabalho não é simples. E a Ucrânia foi a oportunidade.
A posição dos comunistas sobre a Ucrânia nem sequer é um bom argumento para este paralelo. Qualquer pessoa informada sabe que o PCP não apoia o regime de Putin. É verdade que, por mais que diga que não apoia a invasão, não há um documento oficial ou uma declaração do secretário-geral – que vinculam o partido – que reconheça a invasão. E que a trate como um ato contra a autodeterminação de um povo, sem responsabilizar imediatamente a Ucrânia e os EUA por isso.
Só que, no que toca a invasões militares criminosas, ilegais e imorais, o PCP não é um estreante. PSD e CDS não se limitaram a apoiar a criminosa, ilegal e imoral invasão do Iraque. Envolveram Portugal nessa aventura. Não é “whatabautismo”, é avaliar comportamentos dos partidos com coerência e proporcionalidade. Critico Jerónimo como critiquei Barroso e Portas. A sua posição é imoral, porque insensível aos valores da autodeterminação dos povos; cínica, porque nem se assume de forma explicita; e incoerente com o que os comunistas defenderam no Iraque ou no Kosovo. Mas se isto não serviu como critério para atirar o PSD e o CDS borda fora do sistema democrático, também não serve para o fazer com o PCP.
Só que esta guerra não é tratada como as outras. Não porque seja diferente, mas porque EUA, NATO e a UE estão, excecionalmente, do lado do ocupado. Também não são critérios morais que movem o PCP. É a ideia de que a hegemonia imperial norte-americana se combate com a recuperação de um mundo bipolar (ou multipolar), em que outros impérios resistam. Na realidade, o comunismo pró-soviético não combatia o imperialismo, escolhia um imperialismo contra outro. E nisto, a posição comunista sobre a guerra da Ucrânia, que resulta de um automatismo antiamericano, é um espelho fiel do automatismo pró-americano de quem determina a sua agenda política e moral pelos interesses circunstanciais da Casa Branca. Ainda vamos ouvir os que entregaram as nossas empresas de energia ao regime chinês dar lições sobre a ditadura de Pequim. Começou no dia em Nancy Pelosi aterrou em Taiwan.
Estarei mais incomodado com o posicionamento do PCP nesta guerra do que os seus inimigos. Não respondendo a diretivas internacionais, como no passado, ela enfia os comunistas num buraco político, mantendo-os satisfeitos com o aplauso dos convencidos e desistentes de falar para o resto do país. Não é pelo PCP que o lamento. É porque, nesta autossatisfação tribal, está a afundar estruturas necessárias para os tempos que se avizinham, como a CGTP. E porque, com a sua posição, tornou mais difíceis posições ponderadas sobre a guerra, que não se querem confundir com a sua amoralidade.
Já tenho alguma dificuldade em acompanhar as críticas ao PCP por não ter elogiado Mikhail Gorbachev, no momento da sua morte. Elogiar o quê? Não chega ter passado a vida a apoiar uma ditadura, trepar ao poder à boleia dessa ditadura e destrui-la por dentro para merecer elogio. O legado, nos anos 90, foi uma queda vertiginosa do PIB, um aumento brutal da pobreza, uma economia mafiosa e, em pouco tempo, outra ditadura perigosa. Sim, o único legado de Gorbachev é o fim da URSS ou de qualquer coisa que lhe pudesse suceder. Nem tinha no seu passado qualquer credencial democrática, nem deixou para o futuro qualquer legado democrático.
Dir-se-á, com justiça, que não foi este o fim que desejou e por isso Ieltsin o derrubou. Mas não é pelas intenções que julgamos os atores da história, é pelos resultados. E quem o diz teve enormes esperanças em Gorbachev e saiu do PCP no meio dessas esperanças porque o PCP não as acompanhava. Não se pode criticar o PCP por uma coisa – apoiar o que veio depois da URSS – e o seu oposto – criticar o que veio depois da URSS. O PCP é nostálgico da URSS (nenhuma novidade nisso), não é apoiante de Putin. As duas críticas são inconciliáveis.
Voltando à Ucrânia, o incómodo que sinto não me ilude quanto às motivações de uma perseguição política ao PCP levada a cabo por quem nunca teve qualquer problema em apoiar invasões imperiais de países soberanos que custaram centenas de milhares de vidas. O objetivo é transformar o PCP num intocável, em tudo semelhante ao Chega. Não querem banir o PCP, querem naturalizar, por via da equiparação, um partido racista para que possa contar na aritmética do poder. Se foi possível governar com um, também se pode governar com o outro.
Com tudo o que me separa do PCP, e o mais relevante é a política internacional, sei distinguir o seu discurso sobre a invasão da Ucrânia, ainda assim menos grave do que apoio institucional que o governo de Durão Barroso e Paulo Portas deu à invasão do Iraque, do racismo que se vai normalizando na política portuguesa.
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