Desorientação
Esta demissão é, também, a demonstração clara da desorientação do Governo e, em particular, de António Costa
Advogado, presidente do Conselho de Jurisdição Nacional do PSD
Esta demissão é, também, a demonstração clara da desorientação do Governo e, em particular, de António Costa
Finalmente, a Ministra da Saúde demitiu-se, invocando já não ter condições para se manter no cargo. E a única surpresa é que apenas agora o tenha feito…
O registo da passagem de Marta Temido pelo Executivo é, na minha opinião, largamente negativo. E os exemplos são múltiplos. Os encerramentos de urgências, sobretudo obstétricas. O aumento do número de Portugueses sem médico de família. A incapacidade para resolver o problema das listas de espera. A recusa em dialogar com as diferentes categorias de agentes do sistema. A diabolização, por motivos puramente ideológicos, das parcerias público-privadas, que tão bons resultados tinham demonstrado.
Mas, como se tudo isto não fosse já suficiente, na passada semana tivemos direito a declarações desastradas, no final do Conselho de Ministros, que são prova acrescida do seu descolamento da realidade: os constrangimentos por que passa o SNS são culpa das decisões, tomadas na década de 80, em matéria de acesso aos cursos de medicina!
Ora, a este propósito, não resisto a recuperar alguns dados referidos pelo Bastonário da Ordem dos Médicos, numa sessão pública ocorrida em Novembro do ano passado.
Nos últimos 20 anos, triplicou o número de estudantes de medicina em Portugal.
Em 2008, havia 38.392 médicos inscritos na Ordem. Em 2021, o número aumentou para 59.697.
Em 2020, tínhamos um ratio de 5,5 médicos por mil habitantes, enquanto em 2000 tal ratio era de 2,4.
Segundo a OCDE, entre 36 países analisados Portugal era o terceiro com mais médicos por cem mil habitantes.
Não há, pois, falta de médicos em Portugal. O que há é falta de capacidade política para tomar as decisões necessárias, seja para tornar mais atractivo o SNS para esses (e outros) profissionais, seja para (o que seria mais importante) criar lógicas de funcionamento em rede entre o SNS e os sectores social e privado da saúde. Sendo que, nunca é demais recordá-lo, o PS teve responsabilidades governativas na área em vinte dos últimos vinte sete anos…
Em suma: mais de 1400 dias após a tomada de posse de Marta Temido, o SNS está em muito pior situação do que aquilo que ocorria nesse momento.
Mas esta demissão é, também, a demonstração clara da desorientação do Governo e, em particular, de António Costa.
Desorientação, desde logo, porque há apenas cinco meses renovou-lhe a confiança política, reconduzindo-a no cargo, quando o registo da sua actuação patenteava não existir qualquer razão para isso. Se bem que, é certo, não tenha sido caso único. Porque outros, como João Gomes Cravinho, Ana Abrunhosa ou Maria do Céu Antunes, permanecerem no Governo, na mesma ou em outra pasta, quando o seu desempenho político impunha também a sua substituição.
Desorientação, por outro lado, por lhe ter cometido a responsabilidade de preparar o novo estatuto do SNS, quando, pelos vistos, já antecipava que não seria Marta Temido a concretizar a sua aplicação (até porque, publicamente, disse que “desta vez” teve de aceitar o pedido de demissão).
Mas desorientação, ainda, por a demissão anunciada ser a termo incerto, já que a substituição não será rápida, uma vez que deverá ainda apresentar ao Conselho de Ministros a legislação relativa à direcção executiva do SNS.
Ou seja: um membro do Governo que é, a partir de hoje, politicamente inexistente, definirá os contornos de um dos aspectos essenciais do SNS (ainda que profundamente errado), com que o seu sucessor (ou sucessora) terá de viver.
Ora, precisamente por força dessa centralidade, não deveria ser o novo titular da pasta a trabalhar o tema?
No último Congresso do PS, António Costa implicitamente lançou Marta Temido como uma das putativas candidatas á sua sucessão. E, como então aqui escrevi, a própria caiu no engodo, respondendo com um risonho “nunca se sabe” à pergunta sobre uma eventual candidatura ao lugar de secretário-geral…
Doze meses passados, Marta Temido abandona o Governo sem glória e, muito provavelmente, sem qualquer futuro político, pagando o preço pela inépcia com que desempenhou as suas funções, mas também pela incapacidade de sair no momento adequado.
Aqui chegados, a pergunta do “milhão de dólares” é se, com esta demissão, se abrem perspectivas mais risonhas para a resolução dos problemas do SNS e, sobretudo, para que os cidadãos tenham acesso aos cuidados de saúde a que legitimamente aspiram, em tempo adequado e com qualidade.
A resposta é simples: tudo dependerá de António Costa. Porque as políticas que Marta Temido implementou tiveram, sempre, o apoio expresso e a cobertura política total do Primeiro-Ministro.
Se António Costa for capaz de arrepiar caminho, assumindo que errou, o novo ministro (ou ministra) talvez tenha uma hipótese. Se isso não suceder (o que se afigura o mais provável), será apenas mais um cujo destino estará traçado desde o primeiro momento.
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