Opinião

As Causas. Em agosto toda a fruta tem seu gosto

[Marta Temido] falhou na estratégia radical de luta contra a Covid que escolheu e que teve efeitos devastadores na saúde mental, na socialização e educação dos jovens, na economia. Com isso também fez muito mal ao SNS e gerou o caos em que se encontra, que nunca foi capaz de resolver

No mês de agosto, diz-se, não acontece nada. Não sei se isso já foi verdade, pois o passado é outro país.

Mas este ano, em todo o caso, aconteceu tanta coisa que encheria vários destes programas.

Poderia selecionar dois ou três temas e esquecer os outros.

Mas, talvez abusando da vossa paciência, vou a muitos mais neste dia 30 de agosto em que a rotina pós-férias se começa a instalar ao menos nas grandes cidades.

Mas comecemos pelo pedido de demissão de Marta Temido esta madrugada e pela pronta aceitação do Primeiro-Ministro, com um ritual elogio que soa a pesada crítica.

CRÓNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA

Para se perceber a inusitada noturna demissão talvez seja útil recordar factos de agosto em que o Ministério e a Ministra da Saúde foram protagonistas, o que revelava ser – parafraseando Garcia Márquez – a crónica de uma morte anunciada.

a) O caos nas urgências manteve-se em agosto, ocorreu mais uma morte de uma parturiente em deslocação entre hospitais e outra (com 40 semanas de gestação) teve de ir do Seixal para as Caldas da Rainha, ou seja mais de 150 kms para dar à luz;

b) O Presidente da República fez saber pelos media que não acredita na solução do Governo para o SNS pois a Ministra não vai largar poder… mas apoia a Ministra talvez para que a oposição possa criticar o fracasso do que ele poderia ter evitado;

c) O Expresso de 19 de agosto titula “Marta Temido em queda no PS e em Belém”, e na semana seguinte (com base numa conhecida fonte do Palácio presidencial) refere que o Presidente do Hospital de S. João,

Fernando Araújo, está na calha para ser o futuro CEO do SNS, mas será vetado pela Ministra;

d) No mesmo texto um “membro de outro ministério” (Pedro Nuno Santos?) disse às jornalistas que Temido está a ser injustamente atacada pois a culpa do que se está a passar na Saúde é de António Costa…

e) Entretanto, nem de propósito, o candidato a líder do Partido Conservador inglês (mas poderia ser um ministro português com coragem ainda que falasse como “membro de um ministério”) revelou que nos dias mais imprevisíveis e exigentes da pandemia, os ministros não tiveram liberdade para expressar oposição às medidas restritivas que os especialistas desenharam. Estas políticas foram "baseadas em cenários horríficos" que "ninguém sabia como eram calculados”. E foi Ministro das Finanças desde fevereiro de 2020 até à queda de Boris Johnson, portanto sabe do que fala.

f) Num momento de alucinação, ou seja lá do que for, Marta Temido culpa quem governava nos anos 80 (Cavaco e o PSD) pelo atual caos no SNS, não reparando que o PS desde então governou 20 anos e o PSD menos de 7.

Costuma-se dizer – e bem - que se não bate em mortos, e ainda menos enquanto o corpo esteja quente.

Mas Temido não está morta politicamente e muito menos o estão as suas ideias e estratégia.

Que fique claro: percebi logo uns meses após o início da pandemia que a Ministra não tinha as qualidades necessárias para a missão – e por isso sugeri a sua demissão.

Mas também é verdade que nunca duvidei da sua inteligência, de que tem convicções e que tem coragem de lutar por elas.

O discurso oficial vai ser que Temido teve grande sucesso na luta contra a pandemia e depois estava cansada e não conseguiu dar a volta ao SNS.

Em minha opinião não foi nada assim. É verdade que ela foi salva pelo Almirante Gouveia e Melo, que evitou a tragédia que se anunciava ir ser o processo de vacinação, e com isso teve adesão na visão popular, que a creditou por esse sucesso.

Mas fora de isso, em minha opinião falhou na estratégia radical de luta contra a Covid que escolheu e que teve efeitos devastadores na saúde mental, na socialização e educação dos jovens, na economia.

Com isso também fez muito mal ao SNS e gerou o caos em que se encontra, que nunca foi capaz de resolver.

E o resultado desse exagero não compensou: segundo revela o “Worldmeters”, entre 230 países e territórios, Portugal foi o 10º pior em casos, o 34º pior em mortes com Covid e, como recorda João Vieira Pereira no seu editorial do Expresso, Portugal é “de longe o país da Europa com maior excesso de mortalidade,…mais 24% do que seria de esperar” o que ele afirma que resulta da “forma como o SNS respondeu no combate à pandemia” e o estado a que chegou esse serviço.

Tudo isso poderia ter sido minorado, ao menos nos efeitos devastadores, se a Ministra não fosse tão adversária da participação de empresas privadas e sociais na luta contra a pandemia e se as integrasse em coordenação e concorrência com o setor estatal.

Como disse hoje José Manuel Fernandes, “Temido demitiu-se, mas ela sair nada resolverá se não houver também mudança de políticas. É preciso perceber que o Estado tem de garantir o acesso de todos à Saúde, não tem de ser prestador universal”.

Por tudo isso a questão é saber se a política errada era dela ou de António Costa, o que se saberá se o novo Ministro também se acalmar a cantar a Internacional, ou se pelo contrário vai concretizar uma política alternativa, mais de acordo com o que ao longo de décadas era consensual entre PS e PSD.

A TRAGÉDIA NA SERRA DA ESTRELA

Falemos agora do principal tema de agosto, os incêndios e em especial a tragédia na Serra da Estrela.

Sobre isso agora alguns factos:

Eu estava, como é habitual em agosto, nas Penhas da Saúde na primeira quinzena, e por isso vivi o que pela sua exemplaridade vale a pena relatar em resumo:

a) o início do fogo na madrugada do dia 6 na Vila do Carvalho, a norte da Covilhã e já na encosta da Serra;

b) todo o dia de sábado não vi ataque forte de meios aéreos ao incêndio, e o mato e as árvores foram basicamente deixados a arder pela encosta acima;

c) no domingo, vi a subida dos ciclistas da Covilhã para a Torre com milhares de pessoas ladeando a estrada e evidentemente que sem acessos para o combate às chamas que seguiam numa encosta ao lado; e

d) vi o abandono à destruição da vegetação no Vale Glaciar de Manteigas.

Um forte ataque ao fogo no dia 6 teria evitado a tragédia, mas quem ganhou foi a aparente incompetência da Proteção Civil e o azar da Volta a Portugal ter coincidido com o incêndio ao lado.

Se houvesse dúvidas, bastava ouvir no Correio da Manhã, de 24 de agosto, a gravação das comunicações do chefe dos bombeiros de Manteigas com o Comandante distrital de Castelo-Branco.

É palpável nessas ligações o desespero pela falta de meios para atalhar o fogo no fim de semana em que a Volta a Portugal subiu à serra o que não permitiu evitar o seu alastramento ao Vale Glaciar … e o resto é história.

Perante isto, ficou evidente que não há planeamento para combater fogo em áreas protegidas, os bombeiros vindos de todo o lado não conhecem os caminhos da serra, nem os ventos, nem sequer o que tem de ser protegido e que não deve ser tratado como floresta e mato a deixar arder.

No meio da confusão em que se tornou o Governo, a Ministra Vieira da Silva anunciou de imediato que a Serra da Estrela vai ficar melhor do que estava, e mais uma vez a propaganda e as promessas despudoradas, que não são para cumprir, se juntaram à insensibilidade e ao desconhecimento da realidade.

Como isso não bastasse, a Secretária de Estado da Administração Interna, Patricia Gaspar (fazendo aliás mal as contas), veio desculpar magicamente todos os erros e incompetências com um algoritmo que teria previsto que arderia mais do que ocorreu, assim se criando mais uma cortina de propaganda para se dizer que quem critica não sabe do que fala.

Entretanto, a TSF e o Observador revelaram que desde julho, dois (por vezes devido a avarias todos os três) Canadairs para ataque a incêndios estiveram inoperacionais para “manutenção programada”.

Miguel Lérias da Cruz, 2.º de Comandante Nacional de Emergência e Proteção Civil, nomeado pelo Ministro Cabrita em dezembro de 2020, vem dizer – sem se rir – que “não é o facto de ter estas aeronaves temporariamente inoperativas que (sic) possa criar uma solução mais complicada”.

Como se não fosse nada com ele, o Primeiro-ministro de Portugal desde 2015, António Costa, vem dizer – também sem se rir – que este problema resulta dos 3 Canadairs serem velhos, mas que o Governo em julho deste ano decidiu comprar dois novos que serão entregues em … 2026, por isso onze anos depois de Costa ter começado a tratar destas coisas.

E como ninguém vai à Google procurar, ninguém se admira que diga isso mas tivesse sido colocada na gaveta pelo governo PS a decisão tomada pelo Governo de Santana Lopes em 2004 de comprar 6 Canadairs e que em 2018 tivesse sido anunciada a chegada de 2 Canadairs novos em … 2022.

Claro que agora, com o Outono a chegar e os novos temas, ninguém se vai preocupar mais com o tema dos incêndios e o Governo prepara-se para passar por entre os pingos da chuva que chegará mais cedo ou mais tarde.

ENVELHECIMENTO E POLÍTICA DE IMIGRAÇÃO

Para além de factos incendiários, falou-se muito em agosto do envelhecimento da população portuguesa, e com razão.

Baseando-se num estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, o Público revela na passada semana que Portugal “é o País da EU que está a envelhecer mais rapidamente” (ou seja, em que o ratio entre maiores de 65 anos e menores de 14 anos é pior) e que já é agora depois da Itália o pior da EU.

Por isso também se compreende que não haja trabalhadores para restaurantes e hotéis, para a construção civil e agricultura e nem para a vindima no Douro (neste caso como revelou o Expresso na sua edição de 6ª feira passada).

Várias notícias referem os pedidos das associações patronais para que se tomem medidas que mitiguem este problema, sendo que a imigração faz parte da solução.

Nem por acaso, numa excelente reportagem de Marta Gonçalves e Raquel Moleiro, o último Expresso revela que na rua do Benformoso em Lisboa, com 400 metros, estão registados 10 000 habitantes, a quase totalidade imigrantes ilegais (e a maioria do Bangladesh) que voltam a imigrar clandestinamente para países europeus, mantendo o registo que lhes permitirá em 5 anos obter cidadania portuguesa e por isso direito de circulação na Europa. O esquema repete-se um pouco por todo o lado.

Ou seja, temos caos na imigração e não temos a essencial política de imigração.

Perante este conjunto de factos, que faz o Governo? Assobia para o lado; ou, como gostava de dizer em tempos o comentador Marcelo, “guarda de Conrado o prudente silêncio”.

CACHAROLETE DE FACTOS AVULSOS DE AGOSTO

MRS explica-nos através do Expresso que não quer gastar prestígio, apoio e popularidade para evitar que o País piore, preferindo esperar atrás de uma moita para atacar o Governo apenas quando a situação esteja muito mal.

O almirante Gouveia de Melo inventou o conceito de um “porta-drones” para a “guerra robotizada” do futuro e convenceu o Governo a financiá-lo com €130 milhões do PRR. “É um navio revolucionário”, diz ele, o que talvez explique que militares com orçamentos ilimitados nos EUA, China, Rússia, Alemanha ou Reino Unido se não tivessem lembrado disso.

O Governo atacou o Presidente da Endesa por anunciar subidas da eletricidade no mercado livre de 40%, ameaçou a empresa e dias depois os concorrentes estão a fazer o mesmo e, entretanto, o gás para a indústria já subiu 900% em um ano.

O Público revelou que 25% dos juízes acham que há corrupção na magistratura.

O psicólogo Eduardo Sá revela no Observador há duas semanas que o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida divulgou, recentemente, um parecer em que afirma que há áreas em que os pais não têm de ser informados sobre os problemas de saúde dos filhos. Entre elas, por exemplo, estará a saúde sexual dos seus filhos menores.

O Correio da Manhã revelou, também por essa altura, declarações da Provedora do Animal, Laurentina Pedroso, de que o Estado gasta por ano mais de mil milhões de euros sobretudo devido ao abandono de animais de companhia por quem a certa altura os quis ter e se maçou deles.

E vamos terminar em beleza este cacharolete estival.

Antes e depois de dar a mão ao Governo em tudo e mais alguma coisa, o Presidente da República foi comer sardinhas com o Primeiro-ministro em Alfama e a seguir foram fazer juntos uma noite de selfies. Não se revela quem pagou a conta, mas eu atrevo-me a adivinhar…

O ELOGIO

A Ricardo Reis, pelo seu artigo no Expresso “Depressão pós-férias” onde explica como num ano deixou de ser “um dos poucos otimistas acerca de Portugal” para passar a um estado depressivo – como quase todos nós – em relação ao futuro pátrio.

Corajoso, bem escrito, claro e convincente.

LER É O MELHOR REMÉDIO

Sugiro a leitura de dois livros de grandes intelectuais, amigos, a que Portugal muito deve, que reúnem décadas de intervenção cívica nos media, e que reli e li em agosto.

De Vitor Cunha Rego, “Na prática a teoria é outra”, e de José Cutileiro, “Podia ter sido pior”, ambos da Dom Quixote-Leya. Poucos escreveram tão bem, poucos foram tão patriotas e cosmopolitas, poucos ajudaram tantos a pensar tanto.

A PERGUNTA SEM RESPOSTA

O Presidente da Câmara do Porto postou o seguinte texto no fim de semana:

O conjunto de perguntas é para o jornalista João Diogo Correia, que assina no Expresso a peça jornalística sobre o Bloco: Isto faz-se? E no Expresso deixam? Entre os partidos há filhos e enteados? Ou pode explicar porque a esquerda radical “perde” funcionários e a direita moderada os “despede”? Ou Rui Moreira inventou tudo isto?

A LOUCURA MANSA

André Ventura parece que aprendeu com Lenine, para quem os partidos revolucionários crescem afastando os militantes para ficarem cada vez mais puros.

Realmente, rara é a semana em que se não vão embora dirigentes.

Felizmente que não terá condições para fazer uma revolução como o seu antepassado Lenine…

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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