Pessoa é talvez o poeta pátrio (desculpa, Luís). Porque estava certo e porque estava enganado; pessoalmente emaranhado no paradoxo português. Certo, porque falta cumprir-se Portugal; enganado, porque estava convencido de que se cumpriria. Portugal é assim: um país de promessas por cumprir. Portugal não se cumpre, e em Portugal não se cumpre. Promete-se, e basta
Quem, melhor do que ninguém, o percebeu foi António Costa e o PS. Ninguém como António Costa prometeu tanto e cumpriu tão pouco. Não estou a falar do combate aos fogos, mas podia. Não estou a falar da educação, mas podia. Não estou a falar das condições de vida, mas podia. Não estou a falar da justiça, mas podia. Estou a falar de cumprir Portugal, e por isso estou a falar do futuro, dos portugueses por nascer, dos portugueses a morrer: estou a falar da saúde. Da saúde e do seu Serviço Nacional, para quem a solução deste governo parece ser a eutanásia. Isso, e a promessa, essa instituição nacional. Promete-se na firme e verosímil convicção de que ninguém se lembre depois.
Vejamos, enquanto Costa promete - "António Costa promete cobertura total de médicos de família" [2016], "Costa promete médico de família para todos os portugueses" [2017], "Primeiro-ministro anuncia reforço de 3.408 profissionais para a Saúde" [2017], "O Governo vai rever os tempos máximos de resposta garantidos em consultas e cirurgias para diminuir os tempos de espera" [2018], "A “boa surpresa” de António Costa para o SNS é... 800 milhões de euros e 8400 profissionais" [2019], "Costa afirma que serão contratados mais 2.700 profissionais de saúde até dezembro" [2020] - os profissionais exasperam - "Chefes da urgência do D. Estefânia demitem-se. Bastonário fala em risco de "colapso"" [2018], ""Gaia está a arder." 52 diretores e chefes de serviço do hospital demitem-se" [2018], "Demissões em bloco no hospital de São José. Administração diz que queixas dos médicos "são legítimas"" [2018], "Chefes de equipa da Urgência de Medicina Interna no hospital de Leiria demitem-se" [2019], "Dez chefes de equipa de urgência do Hospital Garcia de Orta demitem-se" [2019], "Mais de metade dos chefes de equipa dos serviços de urgência do Hospital de Braga demite-se em bloco" [2021], "Dez chefes de equipa da urgência cirúrgica do Santa Maria demitiram-se" [2021] - e os serviços colapsam - "Urgência da Maternidade Alfredo da Costa condicionada por falta de anestesistas" [2019], "Urgência pediátrica do Garcia de Orta passa a encerrar à noite a partir de segunda-feira" [2019], "Maternidade Bissaya Barreto sem Urgências" [2019], "Várias urgências de Obstetrícia voltam a encerrar nos próximos dias" [2022], "Hospitais de Braga e Aveiro voltam a encerrar Urgências de Obstetrícia" [2022].
Repito, para facilidade de leitura: enquanto Costa promete, os profissionais exasperam e os serviços colapsam. E pergunto: como é que é possível que os portugueses não percebam isto? Porque os portugueses têm memória de peixe. E enquanto a maioria se esquece, há no aquário quem, sendo peixe, se alimente do cardume: são as piranhas. E se há por cá quem a quem nunca falta alimento, são as piranhas socialistas. Zeca Afonso, se ainda estivesse entre nós, cantaria: eles comem tudo, eles comem tudo, eles comem tudo e não deixam nada.
Só uma falta de memória congénita e incapacitante dos portugueses - a que a sabedoria popular chama memória de peixe - pode justificar que Marta Temido, não há muito tempo, fosse uma das ministras mais populares do governo, António Costa tenha conseguido uma maioria absoluta e que se ache normal e se tenha o despautério de o afirmar, que a culpa seja, já não de Passos, mas de Cavaco. Tudo isto, sem que o cardume perceba o óbvio ululante: nenhum primeiro-ministro nas últimas décadas fez tanta propaganda e tão pouca obra quanto António Costa.
Lamento: não é normal que uma grávida, com um hospital a 10 minutos de casa, vá ter o parto a 150 kms de distância, e passe antes por 2 hospitais; não é normal este aumento de mortalidade que já não tem nada que ver com o Covid; não é normal que a maior carga fiscal da história e as declarações de amor ao SNS coexistam com tempos de espera por consultas e cirurgias cada vez maiores e serviços cada vez piores; não é normal que as urgências hospitalares tenham agora hora marcada de funcionamento. Ou é. Num país que desistiu de fazer outra coisa que nadar em círculos à espera que a comida lhe venha de cima e de fora, é.
Comecei por falar do poeta pátrio. Termino com o prosador pátrio, à boleia do cardume: António Vieira (aqui não peço desculpa a ninguém). Dizia ele, no Sermão de Santo António aos peixes, que "Tão alheia cousa é, não só da razão, mas da mesma natureza, que, sendo todos criados no mesmo elemento, todos cidadãos da mesma pátria, e todos finalmente irmãos, vivais de vos comer!". O Sermão foi dito em São Luís do Maranhão no século XVII, mas podia ter sido dito no Largo do Rato hoje.
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