A nossa televisão pública foi das últimas da Europa a principiar porque Salazar desconfiava do meio e não o queria nem por nada, até (supostamente) ter sido convencido pelo general Franco e depois por Marcello Caetano, que terá dado o impulso final para a criação da RTP, em 1957. Caetano, aliás, aproveitou-se bem da televisão para doutrinar com suas Conversas em Família, num género televisivo peculiar ainda hoje de agrado do público português, como qualquer um mais atento por certo concordará.
Onze anos a seguir ao primeiro canal, em dezembro, nascia a RTP2, também conhecida por Segundo Programa, Segundo Canal, Canal 2 ou a 2, que tem cada vez menos audiência, também por ter sempre menos dinheiro para investir em programação. Durante muitos anos, a RTP2 foi sinédoque de televisão de qualidade, até elitista, bons filmes europeus, documentários interessantes, ópera, teatro e bailado, no fundo “boa televisão”.
Pois bem, essa ideia de um segundo canal culto tem origem numa decisão tomada por alturas de 1978, quando os responsáveis decidiram que o Segundo Programa deixava de ser mero retransmissor e passaria a ser uma alternativa ao primeiro canal. Desta nova RTP 2 nasce também a promessa de que a sua informação era melhor e mais independente e, em declarações públicas de diretores da RTP, assumia-se que passaria a haver concorrência explícita entre os dois canais. Da promessa da renovada RTP2, faziam parte produções como Eu, Cláudio (da BBC) e Zé Gato, uma série policial de ação nacional, filmada por Rogério Ceitil, a partir de uma criação de Dinis Machado (o autor O Que Diz Molero).
Um gato no lixo
Exibida entre dezembro de 1979 e agosto de 1980, Zé Gato terá sido a primeira série policial portuguesa e, quase 40 anos depois, continua a ser uma das únicas. Filmada em película, os primeiros episódios foram exibidos a preto e branco, com os segundos já coloridos, dado que no ínterim a cor chegou à televisão portuguesa (a interrupção na exibição sucedeu porque o protagonista teve um acidente que forçou à paragem da produção).
A par de Duarte e Companhia, que chegaria alguns anos mais tarde e pela lente do mesmo Rogério Ceitil, Zé Gato ainda é bem lembrada, percebendo-se de imediato que essa recordação está arquivada com destaque na categoria das memórias do “antigamente” nostálgico e açucarado. Poucos não saberemos reconhecer de imediato os acordes da música do genérico.
A série era um “procedural” e, em cada episódio, havia um crime. Zé Gato (o ator Orlando Costa, que morreu há uns dias, aos 73 anos) investigava-o, descobria os antagonistas, arrumava com eles e deslindava o mistério com o auxílio conselheiro de um polícia reformado (o ator Canto e Castro, já desaparecido) e um informador divertido de nome Matrículas (o magnífico Luís Lello, que morreu muito precocemente, durante a exibição da série, com apenas 33 anos). Nas suas atribulações, Zé tem de se haver com o superior Duarte, homem seco e distante (o espantoso António Assunção, também falecido). Pode dizer-se que este quarteto de fantásticos atores foi uma feliz escolha e fulcral no êxito de Zé Gato.
A esta distância, a produção revela-se naturalmente frágil (ou até bastante má) nos seus efeitos especiais, a ponto de provocar uma certa vontade de rir, apesar de essa comicidade ser involuntária, percebendo-se que os meios eram paupérrimos e a indústria nacional de produção de televisão e cinema periclitante. A RTP quereria um canal 2 diferente e marcante, só que, como em tantas outras empreitadas lusitanas, quem sabe não se tenha investido o suficiente na sua prossecução.
Produzida pelo Centro Português de Cinema, uma cooperativa cinematográfica há muito extinta e exibida, entre 1979 e 1980 na tal RTP-2 renovada, Zé Gato teve autoria de João Miguel Paulino, Dinis Machado e Pedro Franco, realização do (ainda hoje misterioso porque recolhido) Rogério Ceitil e começou por se chamar Um Gato no Caixote do Lixo.
Numa entrevista ao Jornal Sete, em janeiro de 1979, Dinis Machado revelava-se entusiasmado com o projeto e chamava a Zé Gato o Baretta português (por causa de uma produção americana então a ser exibida).
Zé Gato começou por ser exibida às quintas-feiras à noite, na RTP 2 e estreou a 13 de dezembro de 1979 e não havia grandes dúvidas de que era um pastiche às séries policiais que chegavam de outros países. Zé era de uma honestidade à prova de bala, pouco amigo de procedimentos e burocracias (para grande irritação do chefe), preferindo processos próprios e rebeldes. Como ele, todos os personagens principais seguiam uma tipologia narrativa bastante arquetípica (o chefe era austero, o informador era malandro, etc), mas essas convenções ajudavam o espectador português com alguma literacia de ficção americana a seguir os enredos.
A esta distância, e olhando-o no arquivo da RTP, a série conserva uma atualidade interessante, excelentes diálogos e um modo de atuar naturalista e “real” (em especial de Orlando Costa, Luis Lello e António Assunção), que não se veria muitas mais vezes na nossa televisão.
É fascinante olhar a Lisboa do final dos anos 70, os carros, as roupas das pessoas, até os penteados, também porque não há muito documentos em vídeo da altura acessíveis ao grande público. O português falado nos diálogos é escorreito, bem-dito, com vogais muito mais abertas que o português de hoje, mais compreensível, com uma sonoridade eloquente, embora naturalmente mais artificial porque mais teatral. Com uma dos melhoras canções título na história da nossa televisão (letra de Jorge Palma e música de Tozé Brito e outros), em Zé Gato o trabalho de câmara e de ‘montage´ é “moderno” e dinâmico, bem como a edição, consonante com o novo cinema português que na época deu filmes como Kilas, o Mau da Fita (1980), Sem Sombra de Pecado (1983) ou O Lugar do Morto (84).
Mal-amada pela crítica da altura – um crítico chama-lhe um “Himalaia de incapacidade” – a produção sempre foi muito bem aceite pelo público e tem tido várias repetições na RTP Memória, não estando disponível uma edição em DVD. Como curiosidade, em Zé Gato entram em papéis secundários, os então juvenilíssimos Jorge Palma, Manuel Luís Goucha, Helena Isabel ou Manuela Moura Guedes.
Não fora o impacto tremendo de Duarte e Companhia poucos anos depois (de Ceitil, também) e é muito provável que Zé Gato fosse hoje em dia muito mais venerada. Ou, quem sabe, talvez esta produção “alternativa” para o novo e relançado canal 2 tenha ficado a dois cavalos de distância.
P.S. Zé Gato regressaria à atualidade há poucos anos por motivos insólitos, quando as armas usadas na série foram pacificamente apreendidas na casa do realizador, pela verdadeira PJ.
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