Opinião

De Woodstock a Helsínquia, 53 anos de puritanismo

Quando, por este dias, alguns suspiram saudosos por esse Verão do amor livre, da emancipação, da liberdade e do prazer, Sanna Marin, a Primeira-ministra finlandesa, é imolada nas fogueiras digitais por se estar a divertir numa festa e, pecado maior, a dançar. (...) [Mas] o pecado maior de Sanna Marin não foi ter dançado, o seu pecado maior é ser mulher. Essa condição sempre maldita por puritanos machistas e agora também por progressistas pós-modernos

Woodstock foi há 53 anos; o seu aniversário foi há dias. Durante muito tempo, o festival da Paz e Amor foi-nos apresentado como o pináculo festivo do progressismo libertário, a que sempre se opôs o moralismo puritano. Onde aqueles jovens, numa quinta no Estado de Nova Iorque, viram libertação individual e amor, os puritanos viram decadência colectiva e imoralidade.

53 anos depois, talvez seja tempo de olharmos melhor para essa dicotomia. Deixando de parte a evidência de que nenhuma das partes estava certa, lanço uma provocação: o sexo, as drogas e o rock'n'roll de Woodstock talvez devessem ser vistos, hoje, como o paraíso dos conservadores. Mas já lá vamos.

Nem de propósito: quando, por este dias, alguns suspiram saudosos por esse Verão do amor livre, da emancipação, da liberdade e do prazer, Sanna Marin, a Primeira-ministra finlandesa, é imolada nas fogueiras digitais por se estar a divertir numa festa e, pecado maior, a dançar.

Dizem-me que um político com estas responsabilidades tem a obrigação da contenção. Dizem-me que um político neste contexto tem o dever da sobriedade. Há uma anedota antiga, que toda a gente já contou e sobre a qual muitos já escreveram, que vale a pena revisitar. Mandam-nos escolher um entre três políticos: um irascível, intempestivo e vicioso, que fumava e bebia álcool o dia inteiro; um autocontrolado e aprumado, melómano, vegetariano e amante dos animais; e outro com amigos mafiosos, apetência para o álcool e amantes. Se o estimado leitor acha que é no meio que está a virtude, estará a escolher Hitler, em detrimento de Churchill e de Roosevelt.

A imposição de pudicas virtudes sobre o comportamento dos políticos parte de uma premissa intolerável para um conservador liberal: a de que as figuras públicas são figuras do público. E quando digo "do" público, faço-o para sublinhar a ideia de propriedade e posse e não de pertença social. Esta premissa assume que os políticos são propriedade do público, e que lhe devem, para lá do escrutínio associado às suas funções públicas e ao cumprimento da Lei, outro tipo de satisfação. E é por isso que, à distância de 53 anos, Woodstock me parece um paraíso conservador liberal: pelo uso livre do corpo, pelas inclinações livres da prática, tudo sem moralismo impositivo, nada violando a vontade de ninguém - ou, para usar os termos de Mill, nada causando dano alheio.

Há três tipos de críticos da Sanna Marin: os puritanos, os progressistas e os hipócritas. Alguns destes em acumulação.

Os puritanos são os de sempre: os que invocam a "moral, os valores e os bons costumes", os que se inquietam com decotes cavados e saias curtas, os que não toleram a emancipação da mulher. Por trás da argumentação pífia, há sempre um farisaísmo indisfarçável. A esses, recomendo a Bíblia: "Então Míriam, irmã de Aarão que era profetisa, pegou numa pandeireta e todas as mulheres saíram atrás dela, dançando e tocando pandeiretas," (Êxodo 15:20).

Os progressistas pós-modernos são os que não gostam de mulheres femininas - e como agora se diz - cisgenero a afirmar-se no espaço público sem necessidade ou vontade de erodir a ordem biológica, e, culpa maior, sem pedirem desculpa por serem mulheres, não se apresentando, em alternativa, como "pessoas com vagina".

Os hipócritas são todos os que disfarçam as motivações, mas sobrepõem sempre à avaliação do desempenho da função a circunstância do seu ocupante. Talvez valha a pena lembrar que Marin, em dois anos, atravessou uma pandemia com desempenho consideravelmente positivo e, na guerra, tomou o partido da NATO, pedindo a adesão do seu país à Aliança, naquilo que é, na Finlândia, uma ousada decisão.

Mas Marin dançou. E a menos que a dança de uma mulher seja uma valsa ou uma coisa do tipo Maybot, isso é, para esta gente, um pecado maior.

Disse que dançar era um pecado maior? Peço desculpa: o pecado maior de Sanna Marin não foi ter dançado, o seu pecado maior é ser mulher. Essa condição sempre maldita por puritanos machistas e agora também por progressistas pós-modernos. A ambos cabe aos conservadores liberais - cada vez mais os derradeiros defensores da Liberdade e da dignidade humana - a firme oposição.

De volta ao Verão de 69, fico a ouvir a Joan Baez, que grávida de 6 meses talvez não devesse ter ido para não melindrar ninguém: Take Me Back To The Sweet Sunny South. Oh, sim, levem-me de volta para o lugar onde as laranjeiras crescem / Para a sombra perene / Onde as flores da margem verde do rio crescem / Espalhando a sua doce cena pela clareira. Levem-me, que isto aqui não se pode…

Pedro Gomes Sanches escreve de acordo com a antiga ortografia

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