Opinião

Os bons, os maus e o que podemos fazer

Os bons, os maus e o que podemos fazer

Tiago Mota Saraiva

Arquiteto, dirigente cooperativo e professor na Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa

O caminho da paz faz-se em paralelo com o da desmilitarização, pelo que também não é desvalorizável o papel tóxico dos EUA em torno da guerra

Dias antes da invasão da Ucrânia convidaram-me para um debate que pretendia fazer um confronto entre pró-russos e pró-ucranianos. Perguntei de que lado seria suposto ficar. Pró-russo, respondeu quem convidava. Olhe que não, argui.

Parto para este texto afirmando a minha estrutural oposição política e ideológica para com os governos de Vladimir Putin. Foi o denominado “ocidente” que sempre elogiou os méritos económicos do discípulo de Iéltsin e as medidas liberais (como a flat-tax de 13%) com que foi protegendo a acumulação de capital e ajudando a constituir a classe de oligarcas que hoje conhecemos. Bush e Berlusconi não lhe poupavam elogios. Putin era amigalhaço convidado para passar férias de luxo em família junto das oligarquias do “ocidente”. Contemporaneamente, aprofundava a sua paixão pela ideia da Grande Rússia czarista – por oposição à da União das Repúblicas construída no tempo soviético – e financiava as forças anti-democráticas, nacionalistas e xenófobos, sempre que se propunham aprofundar a estrutura de desigualdades sociais em que vivemos.

Caracterizado o regime russo atentemos ao ucraniano. Há factos que comprovam uma parte da narrativa de Putin. O Batalhão Azov existe e é uma milícia torcionária neonazi que, desde 2014, está integrada na Guarda Nacional. O Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos tem vindo a atribuir-lhes a autoria de diversos crimes de guerra e actos de tortura e violação, sobretudo, na região de Donbass. O próprio Congresso dos EUA deliberou proibir a venda de armas àquela milícia. Esta relação entre o regime ucraniano e algumas forças de extrema-direita tem motivado a aprovação anual de uma resolução na Assembleia Geral das Nações Unidas contra a glorificação “do movimento nazi, do neonazismo e de antigos membros da organização Waffen-SS” a que a Ucrânia, reiteradamente, se tem oposto (1) A estrutura de equilíbrios políticos dentro dos governos da Ucrânia antes da invasão, está longe de se fazer no campo da discussão democrática e eleitoral. Volodymyr Zelensky chega ao poder em 2019, com o significativo apoio das oligarquias ucranianas e com um histórico de operações financeiras menos claras reveladas pelos Panama Papers. O presidente da Ucrânia ganha visibilidade mundial em 2020 quando rejeita abrir uma investigação à acção do filho de Joe Biden à frente da Burisma Holdings – empresa de extração de gás ucraniana – apesar das exigências de Donald Trump crente que esse escândalo lhe daria a vitória eleitoral. A construção de uma imagem de líder sem mácula, de corajoso resistente é importante do ponto de vista estratégico-militar mas não deve deixar de ser lembrado que Zelensky emerge das oligarquias e das classes dominantes da Ucrânia e do mundo global.

Uma leitura binária do que escrevi até aqui, leva-nos a concluir que caracterizo as duas partes da contenda, os dois regimes políticos, como duas partes do mesmo mal. A forma simplista como tem estado a ser tratada esta guerra, levará a que uma parte dos leitores apode esta reflexão como de putinista por ela apresentar reservas ao total apoio a Zelensky. Outra parte, num argumento a que sou mais sensível, dir-me-á que numa guerra não se pode ficar em cima do muro, sem escolher um lado.

Prossigamos então, procurando caracterizar onde me encontro.

A Rússia invadiu a Ucrânia. A Ucrânia tem todo o direito de resistir à invasão e de lutar pela sua autodeterminação enquanto Estado soberano. A vitória militar de um dos lados significará o massacre e a opressão do outro, o que produzirá efeitos imprevisíveis a médio prazo. A única solução é a negociação, o cessar fogo e a paz, tutelada por entidades em que as duas partes confiem. Fazê-lo, é tão difícil quanto urgente. No estado actual, e independentemente do que resulte das negociações, há muitas vantagens em que nenhuma das partes se sinta vencida.
O prolongar da guerra pode ter consequências graves. Há inúmeros espaços de tensão que podem fazer escalar este conflito para uma dimensão jamais vista. Desde o facto de haver combates em zonas próximas de centrais nucleares, ao facto da haver governos que parecem estar com vontade de se juntar a uma das partes do conflito.

A paz é um processo difícil, que demora tempo a construir e com muitos inimigos. Se num dos seus discursos de guerra, Putin referiu que a Ucrânia é uma criação de Lenine e que os dois povos (russo e ucraniano) são apenas um, esta guerra estimulou a natural coesão do povo ucraniano em torno da sua identidade nacional e o ódio a tudo o que venha da Rússia. A Ucrânia tem o direito de viver em paz, como Estado soberano e autodeterminado. A solução tem de passar pela desmilitarização, não apenas das duas partes em guerra, mas de todo o mundo. Ou seja, o inverso do que está a suceder.

O caminho da paz faz-se em paralelo com o da desmilitarização, pelo que também não é desvalorizável o papel tóxico dos EUA em torno desta guerra. Nos dias anteriores à invasão russa, Biden não perdia oportunidades de hostilizar a Rússia. Nos dias imediatamente a seguir à invasão, Biden remeteu-se ao silêncio obrigando a UE a centralizar a resposta do “ocidente”, entre sanções e a militarização. Isto permite que Biden se foque na China e, uma vez por outra, lance um comentário incendiário para manter aceso o conflito na Ucrânia.

Esta guerra tem inúmeras vantagens para os EUA. Longe das sua fronteiras, sem envolver os seus militares, obrigando a Europa a militarizar-se e a comprar, tudo o que comprava a Leste, nos EUA e Canadá. Ao invés, os povos da Europa, de Portugal à Rússia, só têm a perder com o prolongar da guerra. Não deixando de valorizar a aparente unidade europeia no estabelecimento de sanções a aplicar aos oligarcas russos e de repudiar a lógica de cancelamento de figuras maiores da cultura, ciência ou conhecimento russas, muito gostaria de ver quem se inscrevesse como um pólo de mediação, negociação e bom senso, capaz de encetar caminhos para a paz.

Mas vamos ao que me parece mais importante pensar e fazer enquanto ser humano, a ser humano, a partir de Portugal.

Esta guerra está a obrigar à fuga de milhões de pessoas que residiam nas áreas afectadas. Não ignoro as imagens da propaganda russa quando mostra vídeos de cidades ucranianas com pessoas espancadas e amarradas a postes pela suspeita de serem pró-russas ou ciganas, nem as imagens da propaganda ucraniana quando filma a destruição provocada por um míssil russo que caiu numa escola ou hospital. Estas imagens não me dão argumentos para escolher entre atrocidades, mas dão-me argumentos para que reforcemos as estratégias de acolhimento das vítimas e de quem foge das guerras. Escrevo “das guerras”, não porque pretenda desvalorizar a situação de emergência humanitária a ocorrer na Ucrânia, mas porque não é irrelevante repetir que há outras guerras, outras situações de emergência humanitária e refugiados a movimentarem-se por todo o mundo. Se a guerra na Ucrânia nos entra todos os dias pelos olhos adentro, e isso provoca o nosso choque e uma emoção solidária, não devemos perder a oportunidade de lembrar que não é caso único e que devemos construir outro tipo de respostas que o país não tem.

A partir de quem vemos chegar da Ucrânia, entendamos que os refugiados não chegam ao nosso país pelo seu clima maravilhoso, pelo extraordinário sistema de apoios sociais ou com uma indómita vontade de “empreender”. Procuram sobreviver. Não são imigrantes em busca de uma vida melhor. São refugiados a fugir da guerra. Isto não é irrelevante para perceber o estado de espírito da maioria das pessoas que chega a fugir da guerra. Uma parte encarará a sua estadia em Portugal como transitória. Estão, também por isso, numa condição de precariedade e sujeitos à precariedade.

Isole-se, denuncie-se e combata-se todo o discurso que vê a chegada de refugiados da Ucrânia como uma oportunidade para reduzir salários ou condições de trabalho a partir de uma ideia de refugiado sobrequalificado ou com maior capacidade de trabalho. Essas não são expressões de solidariedade para com o povo ucraniano mas expressões de um oportunismo sem princípios a tentar lucrar com a miséria alheia. A gula que tenho visto em algum empresariado a actuar em Portugal, sempre tão insensível às condições de miséria que proporcionam aos trabalhadores, e que agora, orgulhosamente, se fazem ver com o pin da bandeira da Ucrânia na lapela, leva-me a temer o pior. Cumpre ao Estado garantir que os cidadãos refugiados, venham eles de onde vierem, têm todos os direitos que lhes estão consagrados.

Nos dias seguintes à invasão, de uma forma acrítica e sem reservas, aceitámos que se enviassem armas para a Ucrânia. Discuti com vários amigos, históricos pacifistas, o problema de se estar a sobre-militarizar uma território já muito militarizado e para a possibilidade de se estar a armar perigosas forças de extrema-direita por muitos e longos anos. Como é óbvio este receio não significava que desejasse que o povo ucraniano soçobrasse por não ter armas para se defender. Este é um pequeno exemplo da complexidade do que se discute e do erro que se comete ao simplificar a equação a uma escolha binária. Vivemos um momento extraordinariamente complexo que exige mais conhecimento e pensamento, mas assistimos a uma enorme pressão para que nos coloquemos como meros espectadores exaltados no exército retórico de uma das partes. Fazem-nos crer que se gritarmos muito alto pelos bons e demonstrarmos todas as maldades feitas pelos maus, a guerra terminará.
Neste conflito, tudo o que for dito em Portugal é bastante irrelevante para a resolução do conflito mas acredito que cada um de nós pode fazer muitas pequenas coisas. Cuidando de quem chega sem olhar a credos ou origens, humanizando as respostas e as posições políticas e procurando ouvir e fazer, mais do que declarar. E, no dia em que as “Breaking News” forem sobre outra coisa, é bom não esquecer que a nossa ajuda continuará a ser necessária.

(1) Não deve deixar de ser escrito que o governo russo tem utilizado recorrentemente os serviços de uma empresa privada de serviços militares privados de características semelhantes ao Batalhão Azov, o Grupo Wagner, e que há relatos que todos os seus efectivos se encontram, actualmente, na Ucrânia ao serviço de Putin.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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