Opinião

Há um problema com a maioria absoluta, você sabe qual é

Só se pode ter medo da maioria absoluta. A prova provada não engana, se se repete a experiência o resultado só pode ser o mesmo

Todas as maiorias absolutas deixaram marca em Portugal e só a podemos lamentar. Cavaco Silva não poupou esforços, assumindo formas de autoritarismo que se tornaram lendárias, como a insídia contra José Saramago. Depois dele, com o PS, a partir de 2005, foi o que se viu e o que ainda está para se saber sobre arranjos com poderes económicos.

Face a este histórico, apresentar esta nova maioria absoluta como uma salvação do país, o tal “cartão vermelho” à crise, e até como a antítese de um poder absoluto, será um ato de fé, um alibi bem engendrado ou mesmo uma defesa antecipada, mas é ainda e sempre um truque. Só se pode ter medo da maioria absoluta. A prova provada não engana, se se repete a experiência o resultado só pode ser o mesmo.

Argumentar-se-á que desta vez é diferente, que o primeiro-ministro evitará os vícios do poder absoluto, ou que a equipa remodelada será impermeável à tentação do uso do PRR como penhor da influência social ou ao abuso das redes de decisão que escorrem a partir dos ministérios. Para exibir essa vontade de descompressão, é mesmo provável que o Governo dê um sinal: aposto que retomará os debates quinzenais, por exemplo.

O problema é que muitas das figuras deste novo ciclo chegam diretamente do velho e, da indigitação da presidente do Parlamento até à liderança parlamentar e a ministros, tem sido a gente da anterior maioria absoluta que volta a deitar as cartas. Portugal é pequeno demais e o filme tem tendência a repetir-se. Não fosse esse o caso, houvesse gente nova, e ainda assim o que tem de ser tem muita força: um partido com controlo total do Parlamento subjuga as suas comissões, determina a sua agenda e bloqueia a discussão. Já vi isto e lembro-me bem de como a virtude parlamentar, tão incensada nos dias feriados, era viciada pelos vencedores de domingo passado.

O PS com maioria absoluta é temível e já mostrou como usa o seu poder, não foi há tanto tempo que tenha passado uma esponja.

Por isso, a maioria absoluta é uma mecânica pesada, que produz pelo menos duas vítimas. A primeira vítima é a agenda da governação. Onde o PS foi mais permeável aos interesses económicos, só pode haver pior: ainda hoje não se ouviu uma palavra de explicação para o não pagamento de impostos na venda das concessões das barragens, são 110 milhões; ainda hoje não se sabe como se explica, por exemplo ao governo sueco, os 0% e 10% de IRS para os abastados reformados que fogem do país para o inshore do Algarve, são mais de 800 milhões para este esquema fiscal; ainda hoje não se sabe porque recusa o Governo que sejam tributados os lucros das criptomoedas, a bolha especulativa do século XXI; e, do que se sabe, é que o Governo “não fará concorrência aos privados” na saúde, como garantiu o primeiro-ministro num dos últimos debates. Há nisto um padrão e não é surpresa.

Na saúde e nos benefícios fiscais, o privilégio fatura. Se assim vai continuar, isso está por verificar, mas é agora mais fácil ao Governo usar o fisco para transferir favores para empresas e deste modo ir comprando o pacto social que lhe interessa.

Mas o PS será também a segunda vítima da sua maioria absoluta. É certo que agora festeja a sua vitória pesada contra a esquerda e o primeiro-ministro é endeusado pelos comentadores de direita como um génio, um novo Duque de Wellington em Waterloo. Isso é saboreado com apetite e, dentro de casa, ninguém dirá uma palavra que conteste o vencedor.

No entanto, dez anos de poder, com os últimos quatro dispensando os contrapoderes, com um Presidente limitado, com um Parlamento sem poder e com um partido calado, sem parcerias e negociações que de algum modo contrabalancem a volúpia absoluta, são tempo demais. Podem não se repetir os casos que conspurcaram o Ministério da Administração Interna, ou outros feitos do mesmo calibre, mas a vida é o que é e milhares de agentes políticos ao abrigo da maioria absoluta são um apogeu. É melhor notarmos que a maioria absoluta é mesmo um susto e talvez o PS devesse ser o primeiro a temer esta maioria que tanto ambicionou.

(Nota: no meu artigo da semana passada, em função das sondagens disponíveis, assumi que o “guru”, fosse ele o especialista de comunicações ou a equipa do primeiro-ministro, o arrastava para o risco de maus resultados pela insistência na maioria absoluta, que presumi impopular. As sondagens enganaram-se e enganaram, e a conclusão provou-se errada, facto que só tenho de reconhecer. Mas sobre esse efeito enganador das sondagens valerá a pena discutir a sério)

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