No outro dia, numa dessas “conversas de escritores” ou “entre escritores” cuja maior virtude será a de nos obrigarem a organizar um discurso coerente sobre experiências e memórias que julgávamos esquecidas ou enterradas tão fundo que são como que as raízes invisíveis das árvores, recordei, com certa nostalgia e desencanto, a fúria, a voracidade e o caos de algumas das minhas primeiras leituras mais “sérias”.
A nostalgia vem de uma memória muito nítida do alvoroço, intelectual e físico, provocado por essas leituras, embora recorde poucas passagens, frases e até personagens concretas, como se, na minha cabeça, o tempo tivesse esbatido os contornos sólidos e exteriores desses livros, mas persistissem em mim as sensações difusas, gerais, da experiência de os ler.
Por exemplo, recordo pouco de “Cartas a Sandra”, de Vergílio Ferreira, à exceção de qualquer coisa sobre intimidade e escovas de dentes, que talvez nem esteja nesse livro, mas guardo a memória exata de o ler no 32 que me levava do Terreiro do Paço à faculdade em Entrecampos, e de ter interrompido a leitura ao passar nos Restauradores, abismado por um qualquer desses pormenores que nos impelem a parar a leitura, a olhar lá para fora, numa tentativa de recalibrar o espírito subitamente abalado com a realidade concreta do mundo.
Não é um exercício assim tão fácil quando se está num autocarro cuja composição humana se vai alterando a cada paragem e que nos transporta através de uma cidade que também nunca é a mesma – naquele dia em particular o sol brilhava e é provável que a leitura tenha sido interrompida não por um fenómeno interior, mas pelo incómodo da luz solar, de um raio a atravessar a janela e a incidir com violência nas páginas do livro, reduzindo-as a um chão amaldiçoado de uma brancura ofuscante.
Aquele exemplar pertencia ao meu tio que, por razões que ainda não tive oportunidade de esclarecer com ele, tinha uma biblioteca exígua e metódica com quase todas as obras de Friedrich Nietzsche (neste caso, creio que era uma leitura indicada pelo docente da cadeira de Filosofia no Seminário Teológico Baptista), de Luís Sepúlveda (que presumo ter sido sugestão da namorada) e de Vergílio Ferreira (a obra deste era tão vasta que os cinco ou seis livros do meu tio, só romances, representavam uma ínfima parte do todo).
Poucos anos antes eu tinha lido na escola a “Aparição” e a personagem do Carolino marcara-me a ferros e, naturalmente, foram os livros de Vergílio Ferreira na biblioteca do meu tio a despertar a atenção (ainda que o meu fascínio por filosofia me tenha levado a arriscar uma breve leitura de “Para Além de Bem e Mal” e “Assim Falava Zaratustra” – nas edições da Guimarães –, obras para as quais não dispunha de ferramentas autónomas de compreensão; ainda assim, a estranheza e a dificuldade também formam o leitor e talvez tenha recebido mais dessa leituras incompletas, repletas de dúvidas, do que das narrativas acessíveis e reconfortantes de um Luís Sepúlveda, de quem, graças ao meu tio, li uma série de livros quase de rajada).
Isto para dizer que, certo dia, nos meus vinte anos, comprei um exemplar de “Pensar”, de Vergílio, na então recentemente inaugurada Fnac do Colombo. Durante muito tempo, este livro de meditações, pensamentos, impressões, apontamentos, foi o meu livro de orações, a minha bíblia particular, meu guia, meu labirinto de perplexidades, minha fonte de iluminações, adubo da inquietação. Sublinhei inúmeras passagens a que ainda hoje regresso e se algumas perderam o fulgor da revelação, noutras continuo a encontrar a dúvida (há em toda a dúvida um começo, um germe, de verdade) que me empurra para o pensamento, o pensar que dá
título ao livro (Borges dizia que não há nada que não nos faça pensar, e também isso é verdade).
Numa das entradas, a 79, lê-se: “Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração.” Noutra, a 152: “Tenho duas vidas e não sei como alguns artistas têm só uma. E envergonho-me de não ter só uma também. É como se o que sou como artista fosse uma hipocrisia. Como é que da gravidade de artista se passa em inocência para o convívio mundano? e o riso de dissipação?”
Sublinhei com vigor esta última entrada e a ela voltei recorrentemente durante estes vinte anos à procura da resposta. Hoje percebo que ela talvez se encontre na primeira entrada. Como é que se passa da futilidade, do ruído do quotidiano, das rotinas rumorejantes, para esse estado de solenidade implícita, de recolhimento, de seriedade que a escrita exige? Com esforço, com o movimento da vontade que, mais do que implorar pela graça, se entrega ao silêncio. Um silêncio que, de início, parece estéril e que, aos poucos, se revela fecundo, de vozes múltiplas. As vozes dos deuses que não existem e aos quais nos dirigimos no despojamento da oração.
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