Opinião

A Constituição como vocação: legitimidade, transparência e escrutínio dos juízes do TC

A propósito da recente polémica sobre o novo presidente do Tribunal Constitucional, a professora de Direito Ana Paula Dourado escreve sobre o modo como são escolhidos os membros desta instância

A Constituição como vocação: legitimidade, transparência e escrutínio dos juízes do TC

Ana Paula Dourado

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Após a recente eleição do presidente do Tribunal Constitucional (TC) foram divulgadas opiniões do professor, contrárias a uma visão mais progressista da não discriminação em razão da orientação sexual. Tais opiniões terão gerado insegurança quanto à sua interpretação do princípio da igualdade, no exercício das funções. Reação tardia, pois aquando da sua eleição para juiz do mesmo Tribunal, os seus escritos tinham sido publicados há algum tempo.

A reação é um sinal dos tempos: das opiniões públicas mais atentas; da influência que nelas exercem as audições no supremo norte-americano; de sociedades mais fraturadas. É tardia, porque a questão não é tanto a da eleição do presidente.

O presidente do TC é eleito pelos seus pares, por voto secreto, sem discussão ou debate prévio. Conduz a distribuição dos processos, as sessões, dirige o Tribunal e representa-o nas suas relações externas. Tem voto de qualidade em caso de empate, caso raro. Não é certo, porém, que a mundivisão do presidente simbolize uma tendência dominante no Tribunal. E se simbolizar?

A questão relevante é a da eleição dos juízes do TC e dos critérios de seleção. O eco das opiniões pessoais de um juiz deste Tribunal é uma boa ocasião para indagarmos se os critérios de seleção conferem legitimidade democrática aos juízes; se há um escrutínio do mérito científico dos juízes selecionados; e da sua mundivisão.

Treze juízes. Dez eleitos pelo Parlamento, conferindo-lhes elevada legitimidade democrática. O acordo entre os partidos “de esquerda” e “de direita” tem garantido pluralidade e equilíbrio na composição do Tribunal. Seis dos treze são escolhidos de entre juízes dos outros tribunais, e os demais entre juristas. Três juízes são escolhidos – cooptados - pelos juízes do TC, também na lógica do equilíbrio “esquerda” - “direita”. Treze escolhas, de entre os melhores, assim se espera.

A eleição pelo Parlamento de dez juízes tem sido aceite pelos constitucionalistas, incluindo Marcelo Rebelo de Sousa, como a melhor opção. Por exemplo, se os Presidentes da República pudessem nomear uma parte dos juízes, aumentaria a incerteza sobre o perfil dos nomeados; e se o Conselho Superior de Magistratura pudesse intervir, aumentaria a politização deste último. A substituição das funções do TC por um Supremo Tribunal converte este num tribunal constitucional, politiza-o, e a ideia de que os juízes de carreira são asséticos é um mito. A legitimidade democrática de um tribunal constitucional composto na totalidade por juízes de carreira ficaria muito reduzida. Assim o comprovam os estudos em Portugal, na Alemanha, em Itália.

A eleição parlamentar de dez juízes do TC, por uma maioria de dois terços e voto secreto, também lhes garante independência. Independência promovida pelos mandatos longos e não renováveis.

A cooptação de três juízes pelo TC tem uma legitimidade democrática mais reduzida. A despolitização do método não parece compensar a legitimidade diminuída. Não são conhecidos critérios que garantam o mérito acrescido dos cooptados. Na Alemanha, a cooptação só tem lugar quando as duas câmaras parlamentares não conseguem eleger um juiz no prazo de dois meses.

Aceitemos a elevada legitimidade democrática do tribunal constitucional português. Mas como garantir o mérito científico dos juízes? E como podemos conhecer os seus valores?

Uma das dificuldades tem sido a de atrair alguns dos melhores constitucionalistas para o TC. Ela deve-se, segundo Reis Novais, ao sistema de fiscalização ("Sistema português de fiscalização da constitucionalidade: uma avaliação crítica, 2021"). Um sistema que se afasta do modelo europeu porque se limita ao controlo de normas, como se o perigo viesse especialmente do legislador. Ao contrário dos recursos de amparo, existentes no referido modelo europeu, o sistema português não abrange o controlo de lesões sérias de direitos fundamentais, de atos cometidos por órgãos do poder público. Este sistema de fiscalização também não permite ao TC rejeitar casos com fins meramente dilatórios de condenações, inundando-o de questões irrelevantes.

Em termos de procedimento e de transparência, o mérito e os valores sociais podem ser aferidos por audição pública parlamentar. E ela existe, desde há uns anos, em relação aos juízes escolhidos pelo Parlamento. Inexistente é o escrutínio público do mérito e da mundivisão dos juízes cooptados.

A Alemanha também introduziu uma audição parlamentar, inspirada no procedimento norte-americano, mas não é pública. Entre nós, a referida audição parlamentar dos juízes indigitados para o Tribunal Constitucional tem sido meramente protocolar, sobre o entendimento das suas funções e das funções do Tribunal, com baixa repercussão nos media.

Se a audição pública tiver como objeto o trabalho jurídico produzido e os valores sociais assumidos ou divulgados publicamente, a escolha com base no mérito provavelmente aumentará. Há alguns inconvenientes: cresce a politização e ideologização do Tribunal, numa lógica mais norte-americana. E há algum risco de candidatos de elevado mérito não se disporem a enfrentar o escrutínio público.

Tudo ponderado, a atenção crescente das opiniões públicas e da comunicação social ao mérito e à mundivisão dos juízes do Tribunal Constitucional recomenda uma audição parlamentar dos juízes indigitados para além da mera audição protocolar. Com limites a definir. A evolução dos equilíbrios partidários na Assembleia da República também pode pôr em causa o pluralismo e equilíbrios até agora conseguidos no TC, reforçando a exigência de escrutínio público. A ausência de audição pública e de transparência de critérios fragilizam a cooptação como método de escolha dos juízes do Tribunal Constitucional.

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