Opinião

O combate pela democracia

Eurico Reis*

A propósito do pedido de suspensão do mandato de deputado formulado pelo candidato presidencial André Ventura durante o período de campanha eleitoral, o juiz desembargador Eurico Reis diz que nada na Lei que regula a eleição do Presidente da República aponta para que o legislador tenha querido que essa Lei se sobrepusesse ao Estatuto dos Deputados

Aqueles que não gostam da Democracia e do Estado de Direito têm sobre os defensores dessas Instituições uma enorme vantagem. É que essas conquistas civilizacionais não são naturais. E foi por isso que custaram aos seres humanos séculos inteiros em que ocorreram incontáveis mortes, correram rios de sangue, e muita, mas mesmo muita gente, teve de suportar um sofrimento atroz. Numa canção muito famosa de uma não menos famosa banda chamada “Resistência” pode ouvir-se que “Quando alguém nasce, nasce selvagem. Não é de ninguém”. Selvagem e, acrescento eu, egoísta. Não é um insulto - é uma constatação, sem qualquer intenção pejorativa. Na verdade, os imensos benefícios do trabalho em grupo e das plataformas sociais colaborativas têm de ser aprendidos. Claro que verificados os enormes ganhos individuais alcançados por aqueles que colaboram uns com os outros na prossecução de um objectivo comum, a generalidade dos seres humanos passa a preferir essa actividade conjunta ao labor individual muitas vezes estéril e infrutífero.

Só que, muitas vezes, as pessoas esquecem-se que vivem mais anos, com maior qualidade de vida e usufruindo da possibilidade de buscar a sua felicidade pessoal, bem como têm uma maior possibilidade de sobreviver a pandemias, porque existem essas “coisas esquisitas”, essas construções artificiais que dão pelo nome de “Democracia” e “Estado de Direito”. Porque é nas Comunidades Sociais que se organizam segundo esse modelo político que esses resultados agora descritos estão “mais à mão” das pessoas comuns. E é nessas alturas que aparecem aqueles que afirmam que o melhor é que vençam os egoísmos individuais, que é preciso destruir tudo e dar rédea solta aos ódios e ressentimentos de uns contra os outros. E não é fácil combater essas pessoas que na Grécia Antiga foram baptizados com o nome de demagogos. Tal como muitos outros, entendo que o combate pela Democracia se faz cumprindo integralmente as regras básicas do Estado de Direito e não cedendo às provocações de quem quer destruir essas conquistas civilizacionais (Democracia e Estado de Direito). E, preferivelmente, aprofundando os mecanismos institucionais que propiciam esses ganhos na qualidade e dignidade da vida de cada um e de todos os membros da Comunidade.

Vem tudo isto a propósito do pedido de suspensão do seu mandato de Deputado formulado pelo candidato presidencial André Ventura durante o período de campanha eleitoral. Como tive oportunidade de referir numa carta que enviei ao Expresso, em termos jurídicos, é o Estatuto dos Deputados, que é uma Lei, que se sobrepõe à Lei que regula a eleição do Presidente da República. Na verdade, como aí escrevi, há um princípio fundamental do Direito que é tão velho que até foi formulado ainda em latim que afirma que a lei especial se sobrepõe à lei geral (a palavra técnica é derroga). Esse princípio está consagrado no número 3 do artigo 7º do Código Civil (que, salvo quanto a uma matéria específica que não esta, entrou em vigor no dia 1 de junho de 1967), no qual está escrito o seguinte: "A lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador.". Sublinho a expressão "intenção inequívoca do legislador". No que respeita ao assunto em referência a lei geral é a que regula a eleição do Presidente da República porque a mesma tem como destinatários todos os cidadãos que têm as condições exigidas por lei para poderem votar - e não apenas os que se podem candidatar a esse cargo -, sendo a que aprovou o Estatuto dos Deputados a lei especial porque tem como destinatários apenas os cidadãos que foram eleitos deputados.

E nada na Lei que regula a eleição do Presidente da República sequer aponta, muito menos comprova, que o Legislador quis inequivocamente que essa lei se sobrepusesse ao Estatuto dos Deputados. Claro que, à primeira vista e parafraseando Orwell, há umas leis que são mais especiais do que outras. Por exemplo, o Código Civil destina-se a cumprir objectivos éticos e sociais mais amplos do que a regulação de um concreto acto eleitoral. Acontece, porém, que essa é apenas uma aparência e as aparências iludem.

Uma lei ou é geral ou não é, e o critério dos destinatários da norma é mesmo uma "pedra de toque" que permite distinguir uma lei geral de uma lei especial.

E o Estado de Direito baseia-se na existência de regras claras e pré-definidas para que os conflitos que possam surgir sejam resolvidos com base nessas regras e não em casuísmos de oportunidade, mais ou menos oportunistas.

Aliás, um sinal evidente de que a pretensão de André Ventura era ilegal, como o próprio bem sabia, é que esse argumento de vitimização não está a ser usado por ele na campanha eleitoral.

* Eurico Reis é juiz desembargador

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