29 março 2020 19:49
29 março 2020 19:49
Fechada em casa, entre a família em versão concentrada e esta experiência ácida para quem gosta de redações de jornais que é o teletrabalho, fui esta semana surpreendida por um inesperado mail do meu Centro de Saúde. "Caros utentes, sou a vossa médica de família e estou a contactar-vos no contexto da actual pandemia. Considerando que nos encontramos em estado de emergência nacional, e de forma a proteger a saúde de todos, agradeço que privilegiem os contactos indiretos, estando o meu endereço eletrónico disponível para qualquer situação que necessitem. Desejo a todos que se protejam e envio algumas sugestões em anexo. Com os melhores cumprimentos. LC (médica especialista em Medicina Geral e Familiar)".
Gritei para os rapazes - "Olha, já temos médico de família!" - e parei para pensar. Vivemos no bairro há cinco anos e há cinco anos que esperávamos por esta notícia. Recebê-la em plena pandemia parecia do outro mundo e foi com uma pergunta que respondi ao simpático mail. "Bom dia, grata pelo contacto. Não sabia que tinha médica de família - da última vez que fui ao Centro de Saúde disseram-me que não tinha e não era previsível que tivesse tão cedo.
Significa que passamos a ter médico para durar ou apenas para este período da epidemia?". A resposta foi quase automática (confirmando, suponho, que as urgências e os centros de saúde ficaram subitamente às moscas): "Cara Ângela Silva, já tem médica de família atribuída ... temos todos é de ultrapassar esta situação. Proteja-se! Disponível para qualquer esclarecimento adicional, com os melhores cumprimentos, LC". Respondi na hora: "Ótima notícia! Mal isto acalme e esperando não precisar de recorrer à sua ajuda antes, iremos contactá-la para abrirmos processo. Bom trabalho! Obrigada. Â.S."
A nossa história é corriqueira. Vivemos no bairro há cinco anos e mal aterrámos na zona fomos inscrever-nos no Centro de Saúde onde, para grande desgosto nosso, ficámos a saber que não teríamos médico atribuído, nem previsão sobre quando isso aconteceria. Na nossa anterior residência tínhamos tido mais sorte e durante anos habituámo-nos a recorrer com frequência ao 'nosso' médico. Mas agora, paciência, restava-nos esperar, sabendo que sempre que necessitássemos podíamos pedir um consulta extra. Não é a mesma coisa mas sempre nos garantia alguma retaguarda.
A última vez em que estive no Centro de Saúde foi há cinco meses para regularizar vacinas e não havia novidade. Nem médico de família, nem previsão. A lista de espera era longa. Tínhamos que esperar. E pronto, deixámos de pensar no assunto. Eis senão quando, em plena pandemia Covid-19, o mundo mudou. Ainda tentei perceber se isto tinha alguma coisa a ver com a situação com que o país está confrontado mas ninguém me soube responder. Podia haver notícia - será que libertaram médicos para os centros de saúde para dar resposta a suspeitas de casos Covid e assim aliviar os hospitais? Mas se me tinha sido atribuído um médico para ficar, não fazia sentido. Não encontrei ninguém disponível para esclarecer. Mas foquei-me na boa notícia - já temos o 'nosso' médico.
Foi na boa altura. Fã do Serviço Nacional de Saúde, durante anos abusei dele. Vivia perto de um hospital público e fui vezes sem conta com os meus filhos para as urgências, às vezes por tuta e meia. Dores de garganta, entorces no futebol, ranhos imparáveis, pés torcidos no râguebi, expetoração, febres súbitas, se chegavam a tempo do Centro de Saúde embora lá, mas se os pais chegavam fora de horas e chegavam quase sempre, vamos ali no instante à urgência que fica arrumado. As esperas eram chatas mas treinava-se a paciência, era de borla e a equipa tôpo de gama. Já nos conhecíamos de gingeira. Os médicos dos serviços públicos são parte das nossas vidas.
Hoje, com o SNS ligado à máquina numa luta desigual com um vírus que virou o mundo do avesso, tudo o que fiz me parece imbecil. O Serviço Nacional de Saúde foi violentamente descapitalizado, já sabemos, mas é uma pérola e as pérolas têm que ser bem tratadas. A prova de que não chega para tudo é a situação angustiante dos milhares de portugueses que, tendo ou não médico de família, se viram subitamente num limbo de espera incerta, com exames e consultas cancelados, sem saberem quando chega a sua vez porque há um monofoco chamado Covid. E não é só no serviço público que os doentes 'normais' ficaram em stand by, é no setor privado que agora todos reconhecem ser uma peça essencial desta engrenagem.
São histórias de angústia. Doentes cancerosos a quem suspenderam a radioterapia. Doentes a aguardarem colonoscopias que eram urgentes mas deixaram de ser. Diagnósticos que exigiam sequência e tratamento, era suposto não perder tempo mas agora não dá. Hipertensos e doentes cardíacos a acumularem sedentarismo e ansiedade com a vigilância corrente entre parêntesis. E como o medo paralisa, a malta fecha-se, não refila, espera que passe. Oxalá.
Nós cá por casa não vamos ser pobres e mal agradecidos. Vamos marcar consulta para logo que seja possível com a nossa nova médica. Mas também vamos repensar a forma como passaremos a recorrer ao SNS. Talvez as teleconsultas funcionem. Talvez possamos tirar dúvidas por mail. Talvez a linha Saúde 24 ganhe saúde. Nunca mais iremos com anginas a correr para o médico. E vamos passar a palavra: quando alguém estoirar um pé a jogar à bola, deve começar por dar tempo ao tempo com umas horinhas de gelo. As notícias que nos contam da quebra de milhares de pessoas nas urgências e nos centros de saúde nestas semanas de pânico Covid terão, seguramente, um lado mau - há quem esteja a evitar ir ao médico quando devia exigir ir, por ter medo dos contágios - mas também têm um lado bom - há quem possa mesmo dispensar a corrida à consulta e talvez se aprenda com isso.
Se o balanço final não for trágico, se a contabilidade não mostrar que para estancar o número de mortes por Covid se deixaram morrer pessoas que foram privadas de acompanhamento médico escandalosamente adiado, podemos não nos indignar. É muito cedo para saber a verdade desta guerra sobre a qual nos garantiram que ninguém mentiria a ninguém. Eu, pelo sim, pelo não, vou forçar o primeiro encontro com a minha nova médica. E já decidi: vou levar champanhe. Saúde, SNS!