Opinião

Trabalhar até à morte?

29 novembro 2019 16:24

29 novembro 2019 16:24

Hoje mesmo, o Instituto Nacional de Estatística (INE) revelou a estimativa sobre a esperança média de vida aos 65 anos para 2019. O que devia ser celebrado como uma boa notícia – o facto de estarmos a viver mais tempo – é contudo, como nos anos anteriores, anunciado com uma contrapartida amarga, a subida da idade legal da reforma, que tem aumentado um mês em cada ano. Passará a ser de 66 anos e seis meses em 2021. Agrava-se também, em resultado da estimativa do INE, o corte nas reformas antecipadas. O chamado “fator de sustentabilidade”, que era de 0,56% quando começou a ser aplicado em 2008, irá ultrapassar pela primeira vez, em 2020, os 15% (mais de 120 euros de corte numa reforma de 800, por exemplo). Em 12 anos de existência, o corte do fator de sustentabilidade multiplicou-se por 27!

Alguns dirão que tudo isto é uma inevitabilidade. Será mesmo? Durante muito tempo, em particular no período da troika, ouvimos dirigentes políticos e especialistas em economia sentenciar que o nosso sistema de pensões estava à beira do colapso e que a única alternativa era cortar pensões e pôr as pessoas a trabalhar quase até à morte. Só que os últimos anos desmentiram essa tese.

Na anterior legislatura, foi retomada a lei que atualiza anualmente das pensões, alargou-se o âmbito dos escalões definidos nessa lei e foram feitos três aumentos extraordinários de pensões, compensando, para 1 milhão e 600 mil pensionistas, alguma da perda de poder compra causada pela suspensão do regime de atualização das pensões entre 2011 e 2015. Além disso, começou a fazer-se alguma justiça às chamadas longas carreiras contributivas, eliminando, para alguns grupos, os cortes abusivos. Para quem começou a trabalhar quando era criança (ou seja, antes dos 16), atingidos os 46 anos de descontos, acabou quer o corte de sustentabilidade quer o chamado “corte por antecipação” (uma redução de 0,5% por cada mês que falta para a idade legal de reforma). Para quem, aos 60 anos de idade, tenha 40 anos de descontos, foi eliminado também o corte do fator de sustentabilidade (apesar de a medida não valer para trás, apenas para as pensões requeridas após a aprovação da nova lei).

A eliminação de alguns cortes e os aumentos de pensões não desequilibraram o sistema, antes pelo contrário. Nos últimos quatro anos, o sistema previdencial de Segurança Social teve saldo positivo e deixaram de ser necessárias as transferências do Orçamento de Estado que foram regra durante o período da austeridade. Isto aconteceu porque aumentaram as contribuições (em cerca de 800 milhões por ano), em consequência do aumento do emprego, havendo agora mais receita (8,6% do PIB) que despesa (6,9%). Além disso, o adicional ao IMI sobre o património de luxo (o “imposto Mortágua”) tem representado um encaixe para a segurança social de cerca de 50 milhões de euros em cada ano e a consignação de 1% do IRC para a segurança social significa, para este ano por exemplo, um acréscimo de receita para o Fundo de Estabilização de 198,8 milhões. Criação de emprego, melhores salários e diversificação de fontes de financiamento são os fatores essenciais que garantem a sustentabilidade do sistema, e não a política de cortes nas pensões nem o aumento constante da idade da reforma.

É por isso que devemos mesmo voltar a discutir o que queremos para o presente e para o futuro. Se hoje é possível produzir mais riqueza com menos trabalho, por que havemos de continuar a aumentar o horário de trabalho, em vez de o reduzirmos? Por que razão não se converte o progresso tecnológico, o aumento de produtividade e a inovação em mais tempo livre?

Historicamente, a redução do horário de trabalho tem-se feito de três formas: limitando o horário semanal (das 44 para as 40 horas, por exemplo, em meados dos anos 90), consagrando dias de férias (uma forma de limitar o horário anual de trabalho) ou reduzindo a idade de reforma (limitando o tempo que trabalhamos no período da nossa vida). A ideia de que é inevitável trabalharmos sempre mais é historicamente desmentida, economicamente contestável e socialmente regressiva.

Por isso, é tempo de voltarmos a este debate de forma séria e fundamentada. Da anterior legislatura herdámos, apesar das melhorias, a manutenção de muitas regras profundamente injustas no que às pensões diz respeito. Acabar definitivamente com o chamado “corte de sustentabilidade” (que não é nem condição nem garantia de sustentabilidade) para as pensões a que ele ainda se aplica e terminar com a regra que aumenta todos os anos a idade legal de reforma seriam dois passos sensatos e justos. Sem isso, continuaremos neste paradoxo e neste absurdo de recebermos as notícias sobre o aumento da esperança de vida como uma condenação ao trabalho, mais do que como um anúncio de mais tempo para viver.