A Beleza das Pequenas Coisas

Este país não é mesmo para velhos?

Começo esta minha newsletter com uma frase que me atravessou há uns anos o peito, e que continua alojada na minha cabeça, desde que a escritora e amiga Dulce Maria Cardoso me alertou para a armadilha em que a maioria da sociedade contemporânea caiu:

“Não tratamos bem os mais velhos, o que diz muito de nós enquanto sociedade. Somos uns ingratos, ambiciosos e tontos.”

Como muitas pessoas saberão, já que Dulce o partilhou publicamente, a doença da sua mãe trocou-lhe as voltas e os planos, e levou-a a adiar a escrita da sequela do livro “Eliete”, um dos seus mais brilhantes romances, um caso sério de popularidade, aclamado pela crítica e pelos leitores, que venceu o Prémio Oceanos em 2019 e foi finalista do Prémio Femina.

Dulce escolheu, junto da sua família, estar mais próximo da sua mãe e dedicar-lhe mais tempo, carinho e cuidado, nos últimos anos de vida.

Decidiu ser um abraço mais presente e manter a progenitora na sua casa. Investiu nisso, mudou de morada, procurou ajuda especializada, e não hesitou em adiar projetos e contrariar as demandas e pressões do mercado literário.

Decisões valiosas

Fé-lo porque podia, claro. Mas tal decisão é tão humana e valiosa num mundo que nos faz crer que os velhos são estorvos (porque já não trabalham e são mais dependentes) e o que mais importa nesta vida é o dinheiro, o sucesso profissional, os bens materiais e o aparecer e aparentar a perfeição e a juventude nas redes sociais. Uma treta do capitalismo que importa contrariar e desmontar.

Já agora, embirro com a expressão “idoso”. Vou tentar escapar a ela neste texto.

Gosto muito da palavra “mayor” que os espanhóis usam para se referirem aos mais velhos. Pessoas maiores em experiência de vida e em sabedoria. E que merecem o nosso carinho, atenção e respeito.

Não tenho a mínima dúvida de que na maioria dos casos as famílias recorrem aos lares, porque não têm outra forma de amparar e cuidar dos seus mais velhos. E sei que há nessas famílias dor e culpa por essa decisão, para a qual não encontram alternativa. Tenho um caso assim na minha família.

As vidas profissionais e pessoais da maioria das pessoas são muito desafiantes, a somar ao facto de que os valores necessários para se ter cuidadores especializados no domicílio, 24h sobre 24h, para alguém que precise desses serviços em permanência, são totalmente incomportáveis, mesmo para a classe média.

Chegam facilmente aos 3.000 euros ou mais. E o salário médio do país é bem abaixo disso.

E mesmo para garantir o lugar dos seus mais velhos num lar, num lugar com boas condições, a classe média em Portugal vê-se em apuros para pagar e conseguir vaga.

De acordo com dados atuais do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, noticiados pelo Expresso, dos 2.622 lares em Portugal, menos de 4% têm vagas e, em alguns casos, as listas de espera chegam aos três anos.

E, para piorar esta tormenta, a falta de profissionais tem levado lares a suspender novas admissões. O preço médio de uma cama ultrapassa os 1600 euros por mês. E facilmente pode ser superior a isso.

Há uns anos fiz uma reportagem em lares com condições ideais e cuidados que todos ambicionamos ter. Isto quando a idade nos começar a fragilizar o corpo e a autonomia, e não pudermos estar mais em casa. Fiquei bem impressionado.

Um detalhe: Os preços são proibitivos para a maioria das famílias. De 4000 euros para cima…

Os abusos calados ou normalizados

Este tema leva-me a outra reflexão:

Como é que os nossos pais, mães, avós andam a ser tratados nos lares, longe dos nossos olhos? E como sentem e refletem esses seus últimos anos, ou suspiros de vida, fora da sua casa, dependentes de estranhos, e mais distantes dos seus?

Certo que nesta área dos cuidados em lares, ou hospitais, há muitos e bons profissionais, com vocação e entrega a este delicado e difícil trabalho, que tantas vezes é mal remunerado e física e emocionalmente exigente. Boa parte dessas pessoas são imigrantes, e são cuidadores de excelência.

Mas nem sempre os residentes dos lares estão em boas mãos.

E, nessa fase mais vulnerável da vida, as pessoas ‘mayores’ não têm condições para se defenderem de maus tratos e negligência de terceiros.

A escritora Lídia Jorge escreveu sobre este tema inquietante e perturbador, do fim de vida nos lares, no seu sublime “Misericórdia”, pela D. Quixote, vencedor do Prémio Médicis, um dos mais prestigiados da Europa.

Um livro que é um sismo que faz ruir preconceitos, idadismos e corações empedernidos, e que nos dá esperança para o último capítulo de uma vida. Leiam-no se ainda não o fizeram.

Mas, como toda a boa literatura faz, coloca o dedo nas feridas e é também denúncia e voz crítica às tantas violências, grandes e pequenas, e outras perversidades e abandonos que os mais velhos sofrem.

O cardeal e poeta Tolentino Mendonça referiu-se a este livro de Lídia como “um grito que precisa de ser escutado, porque as sociedades têm de se reconciliar com a velhice.”

O alerta de uma investigação

E foi com enorme desconforto que li a investigação que o jornal Expresso acaba de publicar, assinado pela minha colega Joana Ascensão, que expõe os tantos abusos e violências que sofrem os mais velhos nos lares.

São muitos, demasiados, os relatos de profissionais que dão conta de que os residentes dos lares são dopados com comprimidos para dormir e atados e presos às camas, com lençóis, ligaduras e grades.

Atos silenciosos, e outras vezes normalizados, sob o pretexto de segurança e proteção, para se poupar no trabalho, na chatice, e para compensar o facto de haver pouco pessoal para tanta população sénior num lar a precisar de cuidados, amparo e atenção.

Atos esses que não têm quaisquer benefícios clínicos. Pelo contrário.

Este é um daqueles trabalhos que nos faz perceber o valor do jornalismo de investigação, como mecanismo de denúncia social, feito de forma séria, cuidadosa e profissional.

Fosso entre Ciência e práticas

Os relatos denunciados nessa matéria são perturbadores, numa pesquisa que envolve uma colaboração internacional com o L’Espresso, em Itália, o El Diário, em Espanha, e a revista norteamericana Undark, onde se revela um fosso entre o que diz a ciência e as práticas diárias nos lares.

Como se esclarece neste texto, em Portugal não existem estudos abrangentes que permitam medir a prevalência deste fenómeno, mas cerca de uma dezena de peritos ouvidos pelo Expresso garantem que estas chamadas “contenções químicas ou físicas” são uma prática transversal e recorrente em todos os tipos de instituições.

Em particular nos lares dos países do sul da Europa.

Atos que não previnem quedas, como querem fazer crer, e favorecem delírios e o desenvolvimento da síndrome do stress pós-traumático.

Melhor formação e mais consciência

A lei é omissa e permissiva em relação a este tema e os especialistas alertam para o facto de que é preciso formar os profissionais e alertar a sociedade para uma maior consciência, cuidado e atenção para estas práticas abusivas com os mais velhos.

Em 2022 foi noticiado que uma utente do lar da Santa Casa da Misericórdia de Boliqueime, Loulé, foi encontrada com parte do corpo cheio de formigas e com feridas. O caso foi denunciado num vídeo nas redes sociais.

Uma história de negligência grave que levou a um inquérito.

Quantos absurdos destes escapam aos nossos olhos, porque não moram nas redes sociais? Quantas denúncias não são caladas pela falta de alternativas e soluções? E quando passará a haver tolerância zero para estas práticas silenciosas?

O caso das formigas

Recordo que, na melhor das hipóteses, se não formos desta para melhor, vamos todos ser velhos e velhas. Podemos ambicionar saúde e autonomia até fecharmos os olhos de vez, mas esses sonhos não se encomendam. E todos os mais velhos merecem ser tratados com dignidade, paciência e carinho.

São necessárias melhores condições e um país que ame e invista nos seus velhos. Ora Portugal está entre os países europeus que menos apostam nos cuidados continuados através do PRR.

Será que somos só cidadãos e gente com direitos até à idade da reforma? E quem não tiver um bom pé de meia e uma reforma generosa arrisca-se a ser cobaia de uma IPSS?

É tempo de mudar mentalidades e procurar melhores respostas e medidas. Co-habitação rural? Mais oferta pública de lares e cuidados a pessoas que o tempo deixou mais frágeis? Melhor preparação de diretores e funcionários dos lares?

Os nossos ‘mayores’ merecem melhor antes do derradeiro descanso.

(E lá consegui escapar da palavra que me cheira a naftalina...)

CONVERSEI EM PODCAST COM… HELENA ROSETA

Matilde Fieschi

Helena Roseta foi constituinte, deputada em várias legislaturas, e em 86 saiu do PSD para apoiar a candidatura de Soares a Belém. Mais tarde, presidiu à Câmara de Cascais, foi Vereadora da Habitação em Lisboa e, em 2019, fez a Lei de Bases da Habitação.

Matilde Fieschi

Bastante crítica das recentes ações do autarca do PS Ricardo Leão na demolição das barracas no Bairro do Talude, em Loures, mantém que considera “abusiva” esta atuação repentina, à beira das eleições.

“Como diria o meu amigo Cesariny, falta a certos autarcas uma grande razão. A minha grande razão é o direito à habitação.”

Ouçam-na aqui.

A newsletter “A Beleza das Pequenas Coisas” termina por hoje. Se quiser dar-me o seu feedback, partilhar ideias, sugestões culturais e temas para tratar, envie-me um email para oemaildobernardomendonca@gmail.com.

E deixo a minha página de Instagram: @bernardo_mendonca para seguir o que ando a fazer.

É tudo por agora. Temos encontro marcado no próximo sábado. Até lá, desejo uma boa semana, com muito do que deseja e gosta!

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: oemaildobernardomendonca@gmail.com

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