Ucranianos vão celebrar o Natal mais cedo: “data não é importante” mas mostra “aproximação à Europa” (reportagem numa paróquia ortodoxa)
O padre Philip é vigário-geral da igreja ortodoxa em Portugal e na Galiza. Está cá há 15 anos
RUI DUARTE SILVA
O padre Philip é vigário-geral da igreja ortodoxa em Portugal e na Galiza. Está cá há 15 anos
RUI DUARTE SILVA
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Este ano a Igreja Ortodoxa da Ucrânia permitiu aos fiéis festejarem o Natal a 25 de dezembro, como no Ocidente, em vez do tradicional 7 de janeiro, como na Rússia. Para alguns “é só uma questão de calendário”, para outros “é um sinal de alguma aproximação à Europa e afastamento da Rússia, por causa da guerra”. Independentemente da data, “o importante é celebrar porque os ucranianos estão a atravessar grandes dificuldades” — a antecipação do Natal numa paróquia ortodoxa no Porto
Mira é a primeira a chegar à igreja de São Pantaleão, na rua da Constituição. Mal entra, benze-se e reza a cada um dos santos do altar. Depois senta-se, coloca um lenço roxo na cabeça e ora mais um bocado. Mal vê o padre Philip, levanta-se e faz-lhe sinal — quer falar com ele. Mira mal arranha o português: tenta articular letras, sílabas e palavras para explicar que chegou a Portugal este ano, fugida da guerra russa na Ucrânia. À sua frente um pinheiro alto, enfeitado e iluminado faz adivinhar que é a última divina liturgia antes do Natal, que este ano é festejado por Mira e por centenas de fiéis ortodoxos ucranianos mais cedo.
Celebrar o nascimento de Jesus a 7 de janeiro, segundo o calendário juliano que é adotado pela Rússia, ou a 25 de dezembro, consoante o calendário gregoriano usado no Ocidente, é um debate antigo na Ucrânia. Este ano ganhou uma nova força. Após “serem considerados os numerosos pedidos” dos crentes e “não esquecendo, em particular, as circunstâncias da guerra e a escalada nas disputas do calendário no espaço público”, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia anunciou formalmente que o Natal poderia ser celebrado mais cedo. A decisão afeta cerca de 7000 igrejas em toda a Ucrânia — e também esta paróquia do Porto.
“A data do Natal não é importante”, garante o padre Philip Jagnisz, responsável pela comunidade ortodoxa da igreja de São Pantaleão, até porque “ninguém sabe o dia exato”. “Só sabemos duas coisas: estava frio e a estrela de Bartolomeu estava sob o local onde Jesus nasceu”. Americano de origem ucraniana, Philip está em Portugal há 15 anos mas prefere falar em inglês para explicar que a paróquia decidiu comemorar o nascimento de Cristo nas duas datas. “Independentemente do dia, o importante é celebrar porque os ucranianos estão a atravessar grandes dificuldades, especialmente com a guerra. Têm um agressor como Putin que está a destruir e a matar”.
Todos os fins de semana, a paróquia de São Pantaleão é cedida pela Igreja Católica aos ortodoxos. A comunidade é essencialmente ucraniana, mas também há moldavos, georgianos, búlgaros ou gregos. Russos não há. Zina, por exemplo, é da Moldávia. Chega com o marido e rapidamente começam a preparar a capela para o serviço religioso: ele acarta caixas que estão no caminho, ela tira sacos com presentes pousados em cima dos bancos. Zina chegou a Portugal há quase 20 anos. “No início não percebia nada, andava triste. A língua é muito diferente e a gramática é muito complicada”. Agora já fala bem, mas rejeita o elogio: “Não diga isso, eu só falo o principal”.
Zina e o seu marido, também moldavo, são parte da razão pela qual a paróquia mantém as duas natividades este ano. A Igreja Católica adotou o calendário proposto pelo Papa Gregório há quase 500 anos, no entanto, “as Igrejas Ortodoxas que estão na órbita eslava e russa mantiveram o velho calendário [criado por Júlio César]”, esclarece o estudioso em assuntos religiosos, Pedro Valadares. “É sobretudo uma questão de transição de calendários: o dia 25 de dezembro no calendário gregoriano corresponde ao 7 de janeiro no calendário juliano”, acrescenta.
“O assunto não é de agora”
Este ano, a Igreja Ortodoxa da Ucrânia foi mais afirmativa a dar liberdade aos fiéis para celebrarem o Natal na data ocidental. Porém, não é a primeira vez que as comunidades ucranianas vão festejar mais cedo, sobretudo na diáspora. “Eu tenho filhos nascidos em Portugal. Estando cá há 20 anos, não dá para explicar a uma criança que só vai receber as prendas no dia 7, quando os amigos da escola recebem todos antes”, explica Lyudmyla, enquanto vende doces e biscoitos à entrada da antiga capela da Imaculada Conceição.
Como diz Lyudmyla, “o assunto não é de agora”. O seu avô nasceu a 25 de dezembro e celebrava sempre o Natal no seu dia de aniversário. “Ele já faleceu há algum tempo, mas há 80 anos era assim”, conta, para acrescentar logo de seguida: “Para mim é só uma questão de calendário”. O próprio patriarca Ecuménico de Constantinopla, considerado o líder máximo ortodoxo, festeja o nascimento de Jesus no dia 25, segundo Philip Jagnisz. O arquimandrita recorda a vez em que esteve pessoalmente com Bartolomeu I no ano em que a Igreja Ortodoxa da Ucrânia se tornou independente da Rússia, em 2018.
Para o padre Philip, vigário-geral da igreja ortodoxa em Portugal e na Galiza, não existe uma Igreja Ortodoxa Russa e explica porquê. “Quem é o responsável? Não é o patriarca Cirilo, é Putin. Cirilo faz o que Putin lhe pede, é um próprio agente do KGB. Abençoa rockets que são enviados para matar pessoas na Ucrânia. Isto é absurdo”. Philip suspira e começa um monólogo interior. “É muito triste o que está a acontecer. Tenho familiares em Moscovo que estão completamente brainwashed [lavagem cerebral], dizem que Putin é o pai deles. Que tipo de pai é ele? Está a matar os filhos deles que estão na Ucrânia…”.
“Um sinal de alguma aproximação à Europa”
A pequena paróquia, na Rua da Constituição, vai crescendo à medida que os fiéis vão entrando. O ambiente é familiar: a maioria das pessoas conhece-se e encontra-se regularmente naquele espaço onde durante duas horas e meia não se ouve falar português. Entre mulheres, homens e crianças, quase 40 pessoas juntam-se para a oração ortodoxa. Lesya e Yana, mãe e filha, também estão à espera do padre Philip. A filha é mais faladora e confirma, junto da mãe, que vão comemorar no dia 25, “a 7 já não”. No entender de Yana, a decisão da Igreja Ortodoxa da Ucrânia “é um sinal de alguma aproximação à Europa e afastamento da Rússia, por causa da guerra”.
Pedro Valadares é da mesma opinião: “Trata-se de um certo afastamento da tradição, da Igreja Ortodoxa Russa e da Rússia, e simultaneamente uma aproximação às Igrejas Ortodoxas ocidentais e ao Patriarcado Ecuménico de Constantinopla”. Apesar de o Patriarcado de Moscovo não se ter pronunciado publicamente sobre o assunto, é expectável que a divisão entre as duas Igrejas saia ainda mais ampliada, considera o estudioso em assuntos religiosos. Até 2018, a Igreja Ortodoxa na Ucrânia era uma jurisdição do Patriarcado de Moscovo desde 1686. Foi o primeiro grande cisma religioso desde o século XI.
Já fora da capela, dois miúdos pequenos saem com saquinhos de bombons nas mãos e um sorriso no rosto. Ambos vestem camisolas de lã com motivos natalícios e ostentam no peito pinheirinhos com luzes que piscam — e piscam mesmo. Os mais velhos tampouco saem de mãos a abanar: enquanto se vão despedindo, vão cuscando e comparando as prendas que cada um traz num pequeno saco. Este ano, o Natal chegou mesmo mais cedo.
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