Guerra na Ucrânia

Ucrânia: ataques da Rússia à infraestrutura civil estão a impedir acesso à educação, saúde e alimentação, denuncia Amnistia

Uma rua de Kharkiv sem eletricidade, após mais um ataque russo
Uma rua de Kharkiv sem eletricidade, após mais um ataque russo
SERGEY KOZLOV

Os ataques da Rússia a infraestruturas de energia na Ucrânia começaram a intensificar-se em setembro e deste então não pararam mais. O inverno começa esta quarta-feira e na maioria do país o frio já não é suportável sem aquecimento. Destruir infraestruturas essenciais à vida civil é um crime de guerra, mas isso não aparece ter qualquer influência na estratégia russa. A Amnistia Internacional emitiu um comunicado em que pede o fim destes ataques e descreve as consequências das falhas de energia para a alimentação, a educação das crianças e a saúde, principalmente dos mais vulneráveis

A Amnistia Internacional lançou esta quarta-feira um alerta sobre as consequências diretas que os ataques russos sobre as infraestruturas civis estão a ter em todas as áreas de áreas da vida da população ucraniana. Os cortes de energia, elenca a organização não governamental, “impedem as crianças de frequentar a escola”, aumentam o “frio congelante” que se sente “nos prédios que ficam sem aquecimento”, aumentam o risco de incêndio quando a energia volta e restringem “severamente” o acesso a cuidados de saúde.

Até outubro de 2022, pelo menos 40% das instalações de energia do país haviam sido gravemente danificadas. Em dezembro, as autoridades ucranianas admitiram que mais de 50% das casas do país tinham sofrido quebras de abastecimento em determinado momento.

Um orfanato sem luz na cidade de Kherson, recentemente reconquistada pelas forças ucranianas mas continua a ser alvo de artilharia russa
Chris McGrath

“Temos ataques aéreos constantes. Está a acontecer um agora mesmo. Quando há um ataque aéreo, nenhuma instituição que presta serviços de saúde, clínicas, hospitais ou hospitais privados pode funcionar. O mesmo acontece com lojas ou transportes públicos”, disse Olena (nome fictício) em conversa com a Amnistia Internacional durante um bombardeamento. “Tinha marcado uma consulta para a vacinação e exames de rotina com o meu filho, mas ligaram-me da clínica a dizer para não ir”, contou.

Além de limitar o acesso a exames de saúde de rotina, as cirurgias estão a ser realizadas em condições precárias, muitas vezes sem luz, com o auxílio da iluminação dos telemóveis. Uma outra mulher que falou com a Amnistia, Kateryna (também um nome fictício), disse que os nervos que sentiu antes da intervenção que tinha marcada a afetaram bastante, uma vez que a a máquina que iam usar no procedimento, um laser, dependia de eletricidade para funcionar. “O médico disse que tentaria fazer tudo rapidamente. Aí fiquei nervosa”.

Crimes de guerra

“À medida que muitos países em todo o mundo entram no período festivo, com as ruas cobertas de luzes de Natal, o mundo deve lembrar-se da Ucrânia, que continua impiedosamente mergulhada na escuridão pelos ataques contínuos, deliberados e ilegais da Rússia à sua infraestrutura de energia”, disse Denis Krivosheev , Diretor Adjunto da Amnistia Internacional para a Europa de Leste e Ásia Central. “As táticas criminosas da Rússia são projetadas especificamente para aumentar o sofrimento humano”, acrescentou.

Na passada sexta-feira quando mais um ataque maciço voltou a deixar várias áreas do país totalmente às escuras, o chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, acusou a Rússia de “crimes de guerra” e denunciou o que considera como “outro exemplo do terror cego do Kremlin”.

Borrell não usou essa expressão por acaso. A acusação é grave mas o Direito Humanitário Internacional (DHI) refere que os ataques a infraestruturas essenciais à vida civil são realmente crimes de guerra. As regras do DIH sobre a condução das hostilidades visam encontrar um equilíbrio entre a necessidade militar e a necessidade de manter um nível de vida aceitável para as populações que se veem no meio do conflito e apoiam-se em vários princípios. Um deles, e o mais importante para este caso, é da “proteção específica”.

Esta norma obriga as partes a não atacar alvos como barragens, diques e centrais nucleares, rede elétrica ou ferroviária, entre outras infraestruturas, pois a sua destruição pode ter consequências devastadoras para a vida civil. Quando a central de Zaporíjia foi atacada, no início de março, a ONU veio alertar que qualquer intervenção militar numa central nuclear é contrária à lei internacional. Estas restrições específicas aplicam-se também aos comboios de ajuda humanitária, instalações médicas, alvos cuja destruição possa danificar severamente o ambiente, propriedade cultural, entre outras coisas.

“Estes ataques cruéis e desumanos visam aumentar o sofrimento e causar privações à população ucraniana, hospitais, serviços de emergência e outros serviços essenciais de eletricidade, aquecimento e água. Constituem crimes de guerra e são bárbaros. Todos os responsáveis serão responsabilizados”, disse ainda Borrell, em comunicado.

A denúncia da Amnistia Internacional também alerta para a violação das leis internacionais, pedindo à Rússia que ponha um fim aos ataques “ilegais” que são “uma violação flagrante do direito humanitário internacional”.

Educação e alimentação interrompidas

Os cortes de energia em curso na Ucrânia significam que muitas crianças não podem frequentar a escola, nem presencialmente nem online. Aqueles que conseguem chegar à escola, lê-se no comunicado da Amnistia, caminham muitas vezes na total escuridão, “deslocações que se podem revelar fatais”. “Como os semáforos não funcionam durante os apagões, rapidamente o trânsito se pode tornar um caos, com toda a gente a conduzir em direções diferentes. Se um filho regressa da escola quando já está escuro os pais têm de se preocupar. A taxa de mortalidade de pedestres nas estradas aumentou”, disse ainda Kateryna.

Um em cada dois encarregados de educação na Ucrânia garante que a educação de seus filhos foi prejudicada pelos ataques recorrentes a infraestruturas de energia, de acordo com uma sondagem online realizada pela organização Save the Children. Em novembro, segundo a mesma organização, pelo menos 10 milhões de famílias sofreram cortes de eletricidade.

Também manter uma alimentação saudável e regular é difícil nas zonas mais atingidas pelos bombardeamentos. “Há poucas opções para cozinhar. Alimentar uma criança com salsichas todos os dias é uma péssima opção, mas não se pode cozinhar comida normal, é preciso uma hora e meia para cozinhar seja o que for. Faço cuscuz e salsichas no vapor”, disse Olena. “É tudo muito estressante. Estar sempre a tentar carregar todos os aparelhos, tentar que a comida fique pronta enquanto há luz. Quando há eletricidade temos de fazer tudo ao mesmo tempo. Uma pessoa não consegue mesmo relaxar e por isso estamos sempre sob tensão”.

Pressão adicional sobre grupos marginalizados

Pessoas com deficiência, idosos e pessoas com menos rendimentos estão a sofrer ainda mais do que a restante população. Quando falta a energia, normalmente as pessoas reúnem-se fora de portas para cozinhar com lenha, o que é impossível para as pessoas com mobilidade reduzida. Tornou-se normal ver garrafões de água e latas de comida não perecível em elevadores, para o caso de alguém ficar preso durante um apagão total.

O impacto na saúde mental, bem como na saúde física, também pode ser devastador. Tetyana (nome fictício) disse à Amnistia Internacional que conhece pessoas que não saem há muito tempo de casa porque os elevadores ou não funcionam ou podem parar a meio de um corte de energia. “Há muita gente que está a lutar para conseguir pagar o aquecimento da sua casa no meio de cortes de energia, para os quais depois precisam de geradores, botijas de gás, aquecedores a gás, ou seja, gastos adicionais”.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários

Assine e junte-se ao novo fórum de comentários

Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes

Já é Assinante?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate
+ Vistas