Troca “desigual” que levou à libertação de Brittney Griner expôs flexibilidade dos EUA. Há um “perigo claro” de a Rússia a explorar
Viktor Bout
CHRISTOPHE ARCHAMBAULT
O Kremlin infligiu pressão e sofrimento aos EUA com a detenção da basquetebolista Brittney Griner. As autoridades norte-americanas acabaram por ceder e devolveram à Rússia um traficante de armas condenado. Washington mostrou, assim, ao Presidente russo que os direitos humanos estão em primeiro lugar e que os EUA poderão ceder se a vida dos seus cidadãos estiver ameaçada
Há mais de uma década que o Kremlin tentava libertar Viktor Bout, condenado em 2011 por conspiração para matar cidadãos norte-americanos. A detenção da basquetebolista Brittney Griner, retida numa colónia penal russa por posse de um grama de óleo de canábis, foi a oportunidade que a Rússia esperava. Numa “troca desigual” que libertou os dois prisioneiros, os russos souberam capitalizar a pressão a que o Governo de Biden estava sujeito e levar para junto de si um dos mais prolíferos negociantes de armas, alegadamente responsável por armar exércitos em conflitos africanos nos anos 1990 e 2000.
De acordo com os investigadores ouvidos pelo Expresso, o acordo, ao mesmo tempo que demonstra a preocupação norte-americana pelos direitos humanos, abre um precedente com o qual a Rússia poderá tentar lucrar. A pressão para levar Brittney Griner para casa era crescente. “Os russos sabiam disso e souberam explorar a situação o suficiente para fazer da libertação de Viktor Bout o foco dos seus esforços”, explica Cedric Leighton, analista militar da CNN e antigo responsável dos serviços secretos da Força Aérea norte-americana (onde trabalhou durante 26 anos).
O antigo alto funcionário militar norte-americano sustenta que o Kremlin encara a troca como uma “vitória” conseguida pela força. E revelar ao Kremlin o que Moscovo pode ganhar exercendo força pode significar detenções arbitrárias em catadupa. “Existe um perigo claro de de a Rússia e outros governos repressivos continuarem a deter cidadãos norte-americanos de alto nível e, possivelmente, aprisioná-los. Os EUA deixaram claro que valorizam mais a vida dos seus cidadãos do que marcar pontos políticos ou diplomáticos com países como a Rússia.”
Mark Cancian, antigo alto responsável da Defesa norte-americana, aclara que os riscos de flexibilizar qualquer tipo de cedência à Rússia decorre da preocupação com os direitos civis, que nenhuma democracia pode descurar. Em 2014, os EUA já tinham mostrado como a militância pela vida humana pode dar abertura a trocas desiguais. No Afeganistão, cinco combatentes talibãs foram trocados por um desertor americano, Bowe Bergdhal. “Os Estados Unidos são vulneráveis nessas situações a regimes autoritários. Preocupamo-nos mais com os nossos cidadãos do que eles com os deles." O analista militar pondera o risco de grupos ligados a regimes autocráticos pressionarem os executivos democráticos a aceitarem um acordo.
A importância estratégica de Viktor Bout é uma fraqueza russa?
Se ambos os lados conseguiram o que queriam, também é verdade que Moscovo considera mais vantajoso ter no seu território um notório traficante de armas com “muito sangue nas mãos” do que uma atleta condenada por um pequeno delito relacionado com estupefacientes. “Bout é um protagonista muito maior do que Griner”, admite Mark Cancian, antigo conselheiro do Departamento de Defesa norte-americano. "Os Estados Unidos pagaram um alto preço para trazer Griner de volta, mas é o preço que outros países provavelmente também pagariam.”
O acordo veio mesmo a mostrar-se lucrativo para o regime de Vladimir Putin. O traficante de armas russo Viktor Bout juntou-se ao ultranacionalista Partido Liberal Democrático (LDPR), leal ao Kremlin. Num vídeo publicado no Telegram, o líder do LDPR, Leonid Slutsky, anunciou, num palco, ao lado de Bout, a renovada aliança. “Quero agradecer a Viktor Bout pela decisão que tomou e dar-lhe as boas-vindas às fileiras do melhor partido político da Rússia atual.” O LDPR, fundado pelo já falecido político de extrema-direita Vladimir Zhirinovsky, adotou uma ideologia de linha dura e ultranacionalista, exigindo que a Rússia reconquistasse os países da antiga União Soviética.
Bout foi libertado após 14 anos sob custódia dos Estados Unidos. Descrito como um dos traficantes de armas mais prolíficos do mundo, Bout cumpria uma sentença de 25 anos sob a acusação de conspirar para vender dezenas de milhões de dólares em armas (que as autoridades dos EUA disseram que seriam usadas contra norte-americanos). Segundo Mark Cancian, Bout, que conduzia negócios nas principais zonas de conflito em África, América Latina e Ásia, "é útil porque pode ser um intermediário que ajuda as operações das secretas russas, apesar de o Governo russo negar”. O antigo prisioneiro “pode fornecer armas a grupos que o regime russo não deve ser visto a ajudar”.
“Viktor Bout continua relativamente bem ligado à elite russa, e há muita especulação de que ele não conseguiria manter o seu negócio sem o apoio do Kremlin", sintetiza Raphael Cohen, investigador de Ciência Política do 'think-tank' RAND. Embora essas ligações possam ter atrofiado durante o período em que esteve detido, Bout ainda poderá facilitar “grandes remessas ilícitas de armas para o esforço de guerra da Rússia na Ucrânia”, afirma Cedric Leighton. “Seria uma grande ajuda para a campanha militar russa, que é continuamente atormentada pela escassez de armas e munições”. Outra possibilidade é a de Bout ajudar a Rússia a contornar as sanções ocidentais.
Conforme realça Cedric Leighton, o facto de a Rússia querer tanto que Bout fosse libertado aponta para “grandes fraquezas russas”, da mesma forma que o facto de os EUA estarem dispostos a libertar Bout pela devolução de apenas um prisioneiro norte-americano detido ilegalmente foi uma fraqueza percebida pela Rússia. “Os benefícios para os EUA são mais intangíveis e não tão aparentes do ponto de vista geopolítico”, reflete o analista. Ainda assim, perante a intransigência russa - de recusar juntar a Griner o cidadão norte-americano Peter Whelan -, os EUA compreenderam que seria “aquele acordo ou nada”.
O que pode significar o acordo?
Donald Jensen, diretor para a Rússia e Europa do norte-americano Instituto de Paz, acredita que “esta não é uma questão de algum dos lados se sentir vitorioso face ao outro” e que o tom das relações entre os dois Estados manter-se-á “muito mau”.
“O apoio dos EUA à Ucrânia continua forte. As relações EUA-Rússia ainda estão muito tensas. É improvável que melhorem enquanto a Rússia continuar a sua invasão. A Casa Branca simplesmente considerou a libertação um gesto humanitário.”
Também Raphael Cohen defende que o compromisso não estabelece uma nova cooperação entre a Rússia e o Ocidente, já que as trocas de prisioneiros sempre decorreram. "Haverá muitas pessoas a duvidar do acordo, e já vemos os republicanos no Congresso a levantar essas preocupações. O tempo dirá quem está certo.” E que ninguém confunda a disposição dos EUA de negociar trocas de prisioneiros com um abrandamento no apoio à Ucrânia, apelam os analistas.
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