Guerra na Ucrânia

Como Kherson se tenta reerguer: restabelecer energia é prioridade, mas a Rússia continua a bombardear a cidade e deixou um rasto de tortura

Especialistas antimina a patrulhar os arredores da cidade de Kherson, dia 16 de novembro
Especialistas antimina a patrulhar os arredores da cidade de Kherson, dia 16 de novembro
Future Publishing

Na cidade libertada de Kherson, as autoridades ucranianas depararam-se com edifícios e estradas repletas de minas, infraestruturas críticas destruídas pelo exército russo e centros de detenção ilegais com alegadas “salas de tortura”. Uma recente vaga de ataques aéreos da Rússia exacerbou o estado critico das infraestruturas energéticas e acelerou os esforços de evacuação da cidade

A retirada russa da cidade estratégica de Kherson foi amplamente celebrada pela população ucraniana e pelos seus aliados ocidentais: NATO, União Europeia e EUA. Agora chega a altura de confrontar o reverso da medalha: à semelhança de outros territórios reconquistados pelo exército ucraniano, o que resta de Kherson parece ilustrar a brutalidade das forças ocupantes. À chegada, as autoridades ucranianas encontraram inúmeros edifícios e campos repletos de minas e 11 centros de detenção ilegais, noticiou o “New York Times”, cujas celas mostravam indícios de tortura.

Durante uma visita relâmpago a Kherson no passado dia 14 de novembro, o próprio Volodymyr Zelensky, Presidente da Ucrânia, aludiu precisamente a esta realidade quando acusou os “ocupantes russos” de destruir "absolutamente todas as infraestruturas críticas para a população" e de minar “absolutamente todos os objetos importantes da cidade e da região”.

Volodymyr Zelensky visitou a cidade libertada de Kherson a 14 de novembro
OLEG PETRASYUK

Relatos da absoluta arbitrariedade das detenções e da crueldade das tropas russas estão espalhados um pouco por toda a imprensa internacional, traçando um retrato de uma população vergada pelo pânico e mergulhada na violência.

Anzhela, de 49 anos, relatou à agência britânica BBC a sua experiência num centro de detenção em Kherson, onde terá sido torturada psicologicamente durante um mês, nomeadamente através de privação de sono. A ex-jornalista afirmou ter ouvido homens a ser “espancados” e “torturados com choques elétricos”, que “gritavam de dor”.

No total, Denys Monastyrskyi, ministro do Interior da Ucrânia, assinalou que as autoridades encontraram 63 corpos com sinais de tortura. Alegadamente, quatro dos 11 centros de detenção serviam para isso mesmo, cada um com várias “salas de tortura” dentro das suas instalações.

Jornalistas de diversas publicações tiveram acesso a algumas delas, onde puderam observar o que investigadores ucranianos disseram ser provas de tortura: cabos elétricos sem isolamento, algemas fabricadas com cabos de plástico e longos bastões de metal.

Poucos dias após a retirada russa, a vice-ministra do interior da Ucrânia, Mary Okopyan, deu uma conferência de imprensa em que afirmou estar a “recolher o maior número possível de provas para abrir processos criminais”. Para isso, procuradores ucranianos já obtiveram testemunhos relativos a mais de 800 detenções, a que se irão somar outras investigações nas restantes regiões que escaparam ao controlo do Kremlin.

Corroborando as suspeitas das autoridades, um relatório lançado a 18 de novembro pelo Yale Humanitarian Research Lab, com sede na Universidade de Yale, nos EUA, aponta para que pelo menos 226 pessoas tenham sido detidas ou raptadas durante a ocupação o “número real é provavelmente significativamente maior". O documento nota que as provas recolhidas são “consistentes com uma campanha intencional de detenção e desaparecimento”: segundo os investigadores, pelo menos cinco pessoas morreram após serem presas, seis foram obrigadas a participar em vídeos de propaganda pró-russos e “mais de metade” dos detidos ainda não foram libertados.

A prisão ilegal mais utilizada localizava-se num antigo centro de detenção para jovens delinquentes: os prisioneiros eram torturados com elevada frequência, referiram vários vizinhos ao diário britânico The Guardian.

Uma das "salas de tortura" encontradas num centro de detenção ilegal em Kherson
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Diariamente, residentes dizem ter visto carros sem matrícula e homens com balaclavas a chegar e partir do local, levando prisioneiros com sacos na cabeça. Mykola Ivanovych lembra-se de ver corpos a serem atirados para o exterior da prisão improvisada e ouvir gritos oriundos do local. Chegou ainda a ajudar algumas das pessoas que foram libertadas: "Saíam espancados (…) e completamente desorientados. Eles vinham pedir indicações e nós dávamos-lhes dinheiro para o autocarro".

O critério para ser enviado para este centro nunca foi claro, sugerindo uma campanha indiscriminada de detenções motivada tanto pela intenção de gerar medo entre a população de Kherson, como pelo objetivo de extrair, de facto, qualquer informação útil para o sucesso militar na região.

Vitaliy Serdiuk foi detido pelo facto de o seu filho estar a combater pela Ucrânia. Já Zhenia Dremo acabou no centro porque não tinha cigarros para oferecer aos soldados russos. Ao jornal norte-americano “The Washington Post”, cidadãos locais garantem que muitas pessoas eram presas simplesmente por ostentar tatuagens pró-Ucrânia ou por gritar “Slava Ukraini” [Glória à Ucrânia]. Um homem de 64 anos foi detido por ter servido no exército ucraniano há oito anos.

“Cidade da Morte”

Apenas um dia após ter sido ordenada a retirada russa, Mykhailo Podolyak, conselheiro presidencial ucraniano, alertou no Twitter que Moscovo queria transformar Kherson numa “cidade da morte”.

Acusando as tropas ocupantes de minar “tudo o que conseguiram”, desde “apartamentos” a “esgotos”, Podolyak resumiu desta forma a estratégia do Kremlin: "vieram, roubaram, celebraram, mataram ‘testemunhas’, deixaram tudo em ruínas e partiram".

As minas espalhadas pelo território de Kherson estão a causar particular preocupação às autoridades ucranianas, que não se cansam de lembrar os habitantes desse potencial perigo. Zelensky usou precisamente um dos seus discursos diários para instar a população a "ter cuidado" e a "não tentar verificar independentemente quaisquer edifícios e objetos deixados pelos ocupantes".

Acautelando essa possibilidade, qualquer edifício público ou privado é revistado por equipas antiminas especializadas antes de ser reocupado. O mesmo cuidado é prestado a todas as vias de acesso terrestre para dentro e fora da cidade, onde fitas policiais demarcam as zonas mais perigosas e dezenas de minas retiradas do solo pontuam a paisagem.

Uma pilha de explosivos e minas antitanque descobertos perto de uma ponte nos arredores de Kherson, após a retirada russa da cidade
NurPhoto

Para Tymur Pistriuha, líder da Associação de Especialistas Antimina da Ucrânia, a região de Kherson poderá já ser o local mais minado do mundo. E o certo é que, apesar das precauções de segurança, já 10 trabalhadores ferroviários ucranianos ficaram feridos depois de uma mina explodir, pelo menos um deles com gravidade. Pelo menos um soldado ucraniano morreu em circunstâncias semelhantes.

O Inverno que assusta

Quanto ao estado das infraestruturas, espera-se um longo e árduo inverno. Sem eletricidade e quase sem água corrente e redes de telecomunicação, muitos cidadãos estão totalmente dependentes de ajuda humanitária.

As autoridades ucranianas apressaram-se para a cidade de modo a reerguer alguns serviços básicos, uma tarefa dificultada em grande parte pelo estado da maior barragem da região, muito fustigada pelos confrontos militares. Notando que as forças de Moscovo destruíram todos os transformadores e subestações elétricas antes de abandonar Kherson, Yaroslav Yanushevych, o novo governador da região, destacou restabelecer o fornecimento de eletricidade como o maior desafio: "Sem eletricidade, a escala dos problemas, como a água, permanece insolúvel".

Estes esforços têm sido contrariados por uma recente campanha russa de ataques aéreos contra a cidade, o que levou muitos residentes a procurar locais mais seguros para passar o inverno. Este sábado, dia 26, as forças do Kremlin lançaram 54 ataques de artilharia em Kherson, escreveu Yanushevych na rede social Telegram, acusando a Rússia de “atingir propositadamente alvos civis” e utilizar “táticas de terror”.

Nas redes sociais, Ihor Klymenko, chefe da Polícia Nacional, escreveu que os ataques já causaram 32 mortos desde que a cidade regressou ao comando de Kiev, e pediu à população para “encontrar refúgio em locais mais calmos da região”. Ainda não é claro se as recentes manobras militares do Kremlin sinalizam uma intenção de tentar recuperar Kherson, ou apenas uma campanha de retribuição pela retirada forçada.

Perante este cenário, as autoridades locais aceleraram as tentativas de evacuação da população civil, tendo já o primeiro comboio deixado a cidade no passado dia 25 com 100 pessoas, entre elas 26 crianças, sete doentes acamados e seis pessoas com mobilidade reduzida, confirmou o Ministério para a Reintegração de Territórios Temporariamente Ocupados da Ucrânia.

Os hospitais também foram evacuados, nota a agência Associated Press. Algumas crianças foram levadas para a cidade de Mykolaiv e alguns doentes psiquiátricos foram transferidos para instalações de saúde na cidade portuária de Odessa, sob o controlo da Ucrânia, informou Yaroslav Yanushevych no Telegram.

Texto de José Gonçalves Neves, editado por João Pedro Barros

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