"Estudos da Grandeza da Rússia" vão ser obrigatórios nas universidades russas: é a ideologia do regime a entrar no ensino superior
Universidade pública de Moscovo
ALEXANDER NEMENOV
As aulas serão lecionadas por “imperialistas e nacionalistas” devotos do sistema político em vigor e apoiantes da guerra na Ucrânia. Quem, entre os docentes, não se submeter a um teste sobre “ideologia russa” ou não passar no “juramento de fidelidade” deverá ser afastado das universidades
Depois das “Conversas Sobre o que Importa”, módulos ideológicos obrigatórios introduzidos nas escolas públicas russas, com o objetivo de fazer chegar às crianças a visão do Kremlin sobre a “operação militar especial” na Ucrânia, é chegada a vez de os universitários serem forçados a estudar ideologia pró-Rússia. Como admitiu uma fonte próxima do Gabinete do Presidente russo ao site de notícias “Meduza”, o objetivo da iniciativa é explicar aos jovens “para onde” a Rússia se dirige e quais as suas motivações.
No entanto, a introdução dos estudos ideológicos obrigatórios também visa ajudar o regime a ceifar do corpo docente das universidades russas os liberais que se opõem à guerra na Ucrânia. Os professores serão submetidos a um teste sobre “ideologia russa”, que poderá ainda incluir um “juramento de fidelidade”, revela o mesmo site russo. A medida está a ser encarada como um regresso ao passado: na URSS, para obterem um diploma universitário, os estudantes eram obrigados a frequentar a disciplina de “Comunismo Científico”. A objeção face à obrigatoriedade da unidade curricular foi responsável por um afastamento dos alunos das áreas de Filosofia e História, nos anos que se seguiram. Trata-se, por isso, de uma reformulação histórica do ensino superior russo, voltando este a ser pautado por assuntos da agenda ideológica do Estado.
Regresso às aulas na Rússia é assinalado com uma lição designada "Conversas sobre o que é importante"
O novo currículo será supervisionado por Sergey Kiriyenko, vice-chefe de gabinete da Administração Presidencial da Rússia e responsável pelas zonas ucranianas anexadas pela Rússia. Kyrylo Budanov, líder dos serviços secretos ucranianos, garantiu, numa entrevista ao jornal ucraniano “Pravda”, que Kiriyenko tem intenção de se colocar como o sucessor de Vladimir Putin, naquilo que seria "uma transferência de poder mais tranquila”, em comparação com outros candidatos plausíveis. Além da proximidade inegável de Putin à monitorização do projeto educativo, o currículo será desenvolvido, não pelo departamento de projetos sociais do Kremlin - a que habitualmente é atribuída a pasta do ensino superior -, mas pelo Conselho de Estado, o órgão consultivo responsável por gerir as eleições. Também o Conselho de Estado é chefiado por um colaborador próximo de Kiriyenko, Alexander Kharichev.
Outra das figuras maiores envolvidas na reformulação curricular é Andrey Polosin, chefe de relações regionais da Rosatom, empresa estatal de energia nuclear russa, onde Kiriyenko também já trabalhou. Será ainda envolvido no desenvolvimento do currículo a Znanie, uma organização cujo conselho de supervisão é liderado por Kiriyenko.
Aleksandr_Dugin
Fars Media Corporation (https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Aleksandr_Dugin_13981126000.jpg)
As novas unidades curriculares serão incluídas nos currículos do ensino superior russo no próximo outono, isto é, no início de um novo ano académico. A “ideologia russa” acompanhará os estudantes de Humanidades durante mais do que um ano. Nos cursos de História e Ciência Política, as disciplinas serão lecionadas até à conclusão do diploma. Serão transversais a estes conteúdos a fidelidade face ao regime atual e a compreensão das suas "necessidades".
O currículo ideológico será dividido em quatro módulos. O módulo principal será o histórico, e deverá será confiado a Vladimir Medinsky, antigo ministro da Cultura da Rússia e atual assistente de Vladimir Putin. O segundo módulo, “Código Cultural”, deverá ser conduzido por Mikhail Piotrovsky, diretor do Museu Hermitage, em São Petersburgo.
“Rússia no Mundo” será supervisionada pelo cientista político Sergey Karaganov, e “Visualizando um futuro” deverá ser atribuído a Mikhail Kovalchuk, que lidera a principal instituição russa de investigação nuclear, o Instituto Kurchatov.
Piotrovsky, que lecionará “Código Cultural”, admitiu há poucos meses, já depois do início da guerra na Ucrânia: ”Somos todos militaristas e imperialistas." O diretor do Museu Hermitage recusou-se, por isso, a pedir desculpas pela invasão russa.
Mikhail Kovalchuk é entendido como um dos integrantes do círculo interno de Putin, e Karaganov, encarregado de ensinar a “Rússia no Mundo”, é membro do Conselho de Direitos Humanos da Presidência da Rússia, e é um académico que aconselha o Conselho de Segurança do país Foi Karaganov que descreveu a invasão da Ucrânia como “o destino da Rússia”, já que a Rússia estaria “destinada à vanguarda”, pelo que deveria unir-se e manter-se firme nesse propósito. ”A enorme totalidade do Ocidente está contra nós, mas, mais cedo ou mais tarde, começará a desmoronar. Muitos países estão a nosso favor, porque estão satisfeitos por termos minado - e continuarmos a minar - a hegemonia dos EUA e do Ocidente. A maioria dos países está preparada para cooperar connosco."
Os detalhes do novo currículo ideológico serão debatidos na conferência “DNA da Rússia”, organizada pela empresa Znanie, e onde os quatro principais mentores deverão apresentar propostas. Na conferência, discursará também o escritor de ficção científica Sergey Pereslegin, conhecido ter visões controversas como a de que o aquecimento global beneficiará a Humanidade.
Uma das fontes próximas do Kremlin disse ao site de notícias “Meduza” que, em linhas gerais, os módulos ideológicos iriam basear-se nas crenças de Vladimir Putin de que “o Ocidente está em decadência”, sempre “odiou a Rússia”, e de que o “seu tempo acabou, enquanto o futuro da Rússia se apresenta brilhante”, com uma história e cultura “ricas” que devem ser aproveitadas ao máximo em momento de crise.
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