Será que Putin enlouqueceu? É possível. Eis, portanto, a enésima prova de uma lei da ciência política: a paz depende de regimes políticos que não dependam de uma única pessoa (vulgo democracias constitucionais). No entanto, uma invasão e uma propaganda desta escala não é explicável apenas pela potencial loucura ou negação da realidade de um único homem. Há aqui um lastro cultural que rodeia a elite russa. Estas pessoas vêem o mundo de uma maneira que glorifica a guerra enquanto demonstração de vitalidade e até de pureza. Entre a I e a II Guerra, os românticos ou vitalistas germânicos como Ernst Junger faziam esta defesa da guerra enquanto manifestação máxima do espírito humano. A guerra em nome da nação era o pináculo estético e ético do homem, que, portanto, só podia alcançar a perfeição como soldado. Está escrito. Leiam. Foi esse lastro cultural que originou os sonhos da kultur germânica na primeira metade do século passado.
No seu arsenal literário, a Rússia tem os seus Junger, como Nikolai Gogol, que escreveu um livro que nos ajuda a perceber a mentalidade de Putin: “Tarass Bulba, o Cossaco” (edição portuguesa muito recente da E-Primatur). Este livro conta a história dos guerreiros ucranianos, os cossacos, fundamentais no nascimento da Rússia no século XVI. Na glorificação da guerra, os cossacos viam a morte natural como desonra, só a morte em combate era digna de registo. Em 2022, o exército russo, ou pelo menos as suas chefias, ainda navega nesta maionese.
A ação do livro decorre naquele período conturbado para a cristandade ortodoxa: entre a queda de Bizâncio (1453) e a criação do Czar da Rússia (1547), que seria a base do império russo. Defensores da “verdadeira fé”, os cossacos eram cavaleiros temíveis e lendários que atacavam os católicos polacos a ocidente e os muçulmanos tártaros a sul. Como partilhavam estes dois inimigos, os cossacos (ucranianos) e os moscovitas (Moscóvia) aliaram-se e formaram o Czar. Com o passar do tempo, os ucranianos divergiram e entraram numa rota de separação da Moscóvia, recusando a ideia de Mãe Rússia. Putin e a sua nomenclatura recusa este divórcio, vê a independência ucraniana como uma blasfémia. Ou seja, Putin vive neste tempo místico sem relação com os ucranianos reais de 2022. E, como diz José Milhazes, é bem capaz de estar igualmente desligado de boa parte dos russos reais, sobretudo os mais jovens.
Romântico e nacionalista, Gogol glorifica a violência extrema dos cossacos em nome da verdadeira fé e da grande nação russa, que surge aqui com um destino especial entre as nações. Gogol fomenta a ideia de que a “alma eslava” é especial: “disso só é capaz a índole eslava; ampla e poderosa alma eslava, um mar quando comparada com as outras culturas, meras ribeiras”. É este pan-eslavismo do solo, do sangue e da língua eslava que está no centro da visão de Putin. É igual ao velho pangermanismo. Aliás, se usarmos a linguagem dos vitalistas germânicos pré-fascismo, estamos perante a defesa da gemeinschaft (comunidade de laços históricos, laços de sangue e de língua onde o indivíduo só existe enquanto parcela insignificante dessa nação orgânica) contra a vil gesellschaft (a sociedade ocidental onde o princípio moral e político é a pessoa e não a nação). Gogol diz-nos que os estrangeiros também são filhos de Deus, mas que, no final do dia, só os eslavos são especiais, os eslavos unidos pelo manto sagrado do pan-eslavismo, isto é, a “alma russa”. “Ninguém é capaz de amar assim”, diz. Quem tem a presunção de ser especial no amor acaba inevitavelmente por ser especialíssimo no ódio e na guerra.
O pan-germanismo só foi derrotado através de uma guerra total. Na era nuclear, derrotar o pan-eslavismo dessa forma é um perigo existencial sem precedentes. Então, qual é a nossa solução? Ter esperança nos russos que não aceitam este misticismo bélico. Ter fé numa coisa: como tantos castelos tirânicos ao longo da história, a fortaleza de Putin é um castelo de cartas.
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