Jerry Springer (1944-2023): o ex-presidente de Câmara e apresentador "insubstituível" que inventou a televisão 'lixo' dos EUA
Slaven Vlasic
Através de um talk-show muito popular emitido entre 1991 e 2018, Jerry Springer foi adorado pelo público norte-americano e odiado pela crítica por dar palco ao pior e mais escandaloso da sociedade moderna. Antes disso chegou a ser presidente da Câmara de uma grande cidade, sobrevivendo a um escândalo de prostituição para lá chegar. Após a sua morte, deixa um legado igualmente divisivo e monumental
Alguns adoravam Jerry Springer, pela sua empatia e capacidade de se relacionar com as pessoas comuns. Para outros, Springer era tido como uma metáfora perfeita do declínio da moral e da cultura, alguém que nunca hesitou em dar palco aos elementos mais sórdidos e escandalosos da sociedade norte-americana para benefício próprio e gáudio das massas.
O político e personalidade televisiva, morreu na passada quinta-feira, anunciou em comunicado Jena Galvin, porta-voz da família. Tinha 79 anos, e o legado que deixa é tão divisivo como monumental. "Ele é insubstituível e a sua perda dói imenso, mas as memórias do seu intelecto, coração e humor estarão sempre vivas", disse a porta-voz.
Nasceu em Londres em 1944, na estação de metro de Highgate, enquanto os seus pais, judeus de origem alemã, se abrigavam dos bombardeamentos durante a II Guerra Mundial. A família emigrou para os EUA quando Springer tinha apenas cinco anos, fixando-se na região de Nova Iorque.
Antes de apresentar o “The Jerry Springer Show”, um talk-show de enorme sucesso que esteve 28 anos no ar, Springer estudou Ciência Política na Universidade de Tulane e Direito na prestigiada Universidade NorthWestern, na cidade de Chicago, abraçando desde logo a política e o partido democrata.
Foi inicialmente eleito em 1971 para a assembleia da cidade de Cincinatti, no estado do Ohio, e assim começou uma carreira breve e tumultuosa. Em 1974, quando se descobriu que utilizou um cheque para pagar serviços de prostituição num salão de massagens no estado do Kentucky, Springer demitiu-se e parecia condenado à irrelevância política. Contudo, assumindo os seus erros com altas doses de humor e carisma, regressou à assembleia um ano mais tarde e viria mesmo a ser eleito como presidente da Câmara da cidade em 1977.
Após uma candidatura falhada a governador do Ohio em 1981, Springer arrumou as botas e dedicou-se à televisão, primeiro como jornalista local e comentador e depois como apresentador do “The Jerry Springer Show”. Este seria o seu trampolim para a fama nacional e mundial, um programa que lhe valeu o título de “avô da televisão ‘lixo’”.
Jerry Springer em Nova Iorque na apresentação do episódio que marcou o 20.º aniversário do "The Jerry Springer Show", em 2010
Bennett Raglin
Entre 1991 e 2018, Jerry Springer apresentou diariamente ao público norte-americano um fresco da sociedade contemporânea nos seus contornos mais escabrosos e violentos. Histórias de infidelidade e revelações de cariz sexual eram comuns, tais como nudez, insultos da audiência aos convidados e confrontos físicos entre os vários participantes.
Num dos casos mais célebres, um homem alemão foi condenado pelo assassínio da sua ex-mulher pouco tempo após ambos terem participado no talk-show de Springer. Noutro episódio, o apresentador propôs-se moderar um debate entre membros do Ku Klux Klan e da Liga de Defesa Judaica, encontro que terminou em agressões mútuas e cadeiras arremessadas pelo estúdio. Outra entrevista, em que uma mulher revelou estar envolvida numa relação amorosa com o namorado da sua irmã, motivou coros insultuosos da audiência contra o homem em questão e uma altercação física entre as duas irmãs, travada apenas pela ação de um segurança.
Springer não se importava de ser tratado como o “avô da televisão ‘lixo’”, admitindo em 2010 que o epíteto estava “provavelmente correto”. Para o ex-político, o seu programa era “tolo, louco” e não tinha “qualquer valor social redentor para além de representar uma hora de escapismo” para o público. Mas era esse mesmo o objetivo: “Não há nada no nosso programa que não tenha estado nas primeiras páginas dos jornais da América. A única diferença é que as pessoas no meu programa não são famosas”.
Ainda assim, no final de cada episódio, num segmento intitulado “Final Thought” (última reflexão), o apresentador vestia a pele de crítico social e tecia uma série de considerações acerca das pessoas que conheceu naquele dia, procurando contextualizar o caos que habitualmente se desenrolava ao longo da emissão. Adotando um tom pedagógico, terminava sempre a sua intervenção com a mesma frase: “Take care of yourself, and each other” (Cuidem de vós próprios, e uns dos outros).
"Tive a sorte de ter sido bem-sucedido nas minhas várias carreiras", disse Springer num discurso em 2008 na Universidade NorthWestern. “Mas sejamos honestos, fui praticamente tudo o que não se pode respeitar: um advogado, um presidente da câmara, um pivô de notícias e um apresentador de talk-show. Rezem por mim. Se eu for para o céu, vamos todos.”
Texto de José Gonçalves Neves, editado por Cristina Pombo
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