Invasores de Brasília podem ser julgados por terrorismo e incorrem em penas de prisão superiores a 30 anos
ANDRE BORGES / EPA
Autoridades investigam vários crimes previstos no Código Penal brasileiro, incluindo associação criminosa, golpe de Estado, abolição violenta do Estado Democrático de Direito e atentado contra património. Financiadores e funcionários públicos que não travaram o ataque também podem ter de responder em tribunal, dizem juristas ouvidos pelo Expresso. Dois anos depois, investigação do ataque ao Capitólio norte-americano produziu poucas condenações (e na sua maioria leves)
Os apoiantes de Jair Bolsonaro que este domingo participaram na invasão do Palácio dos Três Poderes, em Brasília, arriscam-se a ser condenados a penas que podem ultrapassar os 30 anos de prisão.
Em causa estão vários crimes previstos no Código Penal brasileiro, incluindo o crime de ato terrorista, associação criminosa, atentado contra o património, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, e crime de golpe de Estado. Segundo o ministro da Justiça brasileiro, Flávio Dino, a Polícia Federal já está a investigar o que aconteceu este domingo com base neste “conjunto de crimes”.
A enumeração destes crimes está presente no inquérito federal 4.879, assinado este domingo por Alexandre de Moraes, juiz do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral. “Os fatos narrados demonstram uma possível organização criminosa que tem por um de seus fins desestabilizar as instituições republicanas”, acusa o Tribunal.
O documento, a que o Expresso teve acesso, exige o que tem vindo a acontecer nas últimas horas: a desocupação de todos os prédios públicos federais, a dissolução dos “acampamentos golpistas” em todo o território, a prisão de todos os envolvidos nos atos criminosos, e a eliminação por parte das empresas de redes sociais de todos os conteúdos e perfis que apoiem a invasão.
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Entre todos os crimes que terão sido praticados em Brasília, o de terrorismo é o que prevê a pena mais grave: pena de prisão em reclusão (em solitária) entre os 12 e os 30 anos. A lei foi atualizada em 2016 e diz respeito à prática individual ou coletiva de atos que tenham o objetivo de “provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, património, a paz pública ou a incolumidade pública”.
“O país nunca passou por um momento tão sério como este, pelo menos recentemente. Não há jurisprudência”, aponta Daniela Pereira, advogada de direito penal no estado de São Paulo. A jurista considera que as diligências ordenadas este domingo de Alexandre de Moraes “não são excessivas", e lembra que as penas dos vários crimes são cumulativas: ou seja, o tempo de prisão para alguns dos envolvidos pode ultrapassar os 30 anos.
O crime de atentado contra o Estado democrático, por exemplo, prevê uma pena de reclusão entre os dois e os oito anos; o crime de golpe de Estado pode ir até aos 12 anos; e atentar contra o património vale uma pena até um ano e ao pagamento de uma multa.
Gilmar Toledo, advogado brasileiro especialista em direito penal, aponta que o tribunal pode considerar que existe um crime continuado (vários crimes similares a acontecer em simultâneo): nesse cenário, a lei prevê que seja aplicada a pena do crime mais grave – com a adição de um a dois terços desse tempo. “Mas neste caso acredito que os atos vão ser julgados como crimes autónomos”, diz o jurista. Isso iria aumentar ainda mais os tempos de prisão para os cidadãos que fossem condenados.
Os invasores podem ainda ser obrigados a pagar indemnizações pelo património público danificado. Os responsáveis do Palácio do Planalto já publicaram uma lista preliminar dos bens destruídos: está lá o quadro “As mulatas”, pintado por Di Cavalcanti, avaliado em quase 1,5 milhões de euros, e que foi rasgado pelo menos sete vezes.
Isto é verdade para os cidadãos que invadiram o Planalto, mas também para os funcionários públicos e agentes das forças de segurança que não travaram ou facilitaram a invasão. Arriscam-se a perder o cargo na função pública e “podem ser considerados participantes por omissão dolosa”, aponta Toledo.
Aliás: o documento assinado pelo juiz Alexandre Moraes pede a suspensão de todos os funcionários públicos que tinham responsabilidades em travar a invasão mas decidiram não agir. “A manutenção do agente público no respectivo cargo poderia dificultar a colheita de provas e obstruir a instrução criminal (...) por meio da destruição de provas e de intimidação a outros servidores públicos”, argumenta a justiça brasileira.
A Justiça brasileira também vai olhar para os responsáveis logísticos e financeiros destas invasões: a invasão estava a ser publicitada nas redes sociais há várias semanas, muitos dos apoiantes já estavam acampados, e este domingo pelo menos 150 autocarros foram disponibilizados de forma gratuita para transportar os invasores até Brasília. “Há políticos e empresários que podem receber penas idênticas [aos invasores]. Não foram os executores diretos dos crimes, mas foram os mandantes”, diz Toledo.
Tendo em conta que o Supremo Tribunal Federal já abriu um inquérito, todos os cidadãos que forem acusados pela sua participação na invasão vão ser julgados neste tribunal – que é a mais alta instância da justiça brasileira. Por isso, não há possibilidade de recurso para outros tribunais: quaisquer penas que venham a ser aplicadas serão definitivas, sinaliza o jurista.
Invasores do Capitólio: investigação continua, penas médias são leves
Para já, mais de 1500 pessoas foram detidas por participarem nos acontecimentos deste domingo. Além disso, foram apreendidos 40 autocarros. As comparações entre a invasão de Brasília e o ataque ao Capitólio são inevitáveis: algumas pessoas que atacaram a casa da democracia dos EUA já vieram apoiar o que aconteceu na capital brasileira.
Desde a invasão do Capitólio, a 6 de janeiro de 2021, mais de 930 pessoas foram acusadas a nível federal pelas autoridades norte-americanas: cerca de metade por contra-ordenações, e 460 por crimes. É a maior investigação criminal da história dos EUA, e as autoridades garantem que ainda não terminou.
Agente da polícia inspecionando os estragos no Palácio do Planalto, sede da presidência brasileira
Contudo, um trabalho recente do "Washington Post” mostra isto: dois anos depois do sucedido, só 69 destas 460 pessoas acusadas de crimes foram de facto condenadas – a maioria por agredir agentes da polícia. Destas, 65 foram condenadas a penas de prisão efetiva – em média, com uma duração de 33 meses. Só 28 pessoas foram condenadas por obstrução ao processo eleitoral, tendo sido condenadas a sentenças (em média) de 42 meses.
Gilmar Costa evita traçar comparações entre os dois processos, mas arrisca: a justiça brasileira pode revelar-se mais pesada do que a norte-americana. De qualquer forma, avisa: este não será um processo rápido. “A justiça é um pouco morosa e o caso é grande. Mas os juízes [do STF] estão empenhados”, garante o advogado.
Daniela Pereira tem a mesma opinião: “O país está preocupado com estes atos e os juízes vão ser capazes de proteger a democracia e punir estas pessoas, que são apenas uma minoria barulhenta.”
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