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Envio de migrantes para o Ruanda é “legal”, diz tribunal britânico. A decisão é mesmo uma vitória para o Governo de Rishi Sunak?

Migrantes chegam às praias de Dover, em Inglaterra, vindos de França FOTO Getty Images
Migrantes chegam às praias de Dover, em Inglaterra, vindos de França FOTO Getty Images

O Tribunal Superior do Reino Unido considerou esta segunda-feira “legal” o plano do Governo conservador para enviar para o Ruanda candidatos de asilo que cheguem de forma “irregular” às costas britânicas, analisando-se no país africano os seus pedidos. A decisão pode vir a ser uma dor de cabeça burocrática para o Ministério do Interior, que já lida com enormes atrasos no processamento de pedidos de proteção internacional

O envio de requerentes de asilo do Reino Unido para o Ruanda é “legal”, decidiu esta segunda-feira o Tribunal Superior do Reino Unido. O acordo entre os dois países tem gerado das mais fortes críticas ao Executivo conservador de Rishi Sunak. Embora este ainda não fosse chefe de Governo quando a parceria foi assinada (aconteceu no mandato de Boris Johnson), continua a apoiá-la.

O Tribunal analisou a legalidade da lei nos últimos seis meses, depois de um voo com oito requerentes de asilo ter sido impedido de descolar para o Ruanda por ação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH), instituição que não está ligada à União Europeia e da qual o Reino Unido faz parte.

Um grupo de migrantes que esta semana conseguiu atravessar o canal e chegar ao Reino Unido
BEN STANSALL/ Getty Images

Segundo o recente veredicto, sujeito a recurso, o Governo britânico pode enviar para o Ruanda migrantes que tenham chegado ao Reino Unido por rotas “irregulares” (o conceito não é consensual entre advogados de direitos humanos, porque o Reino Unido não oferece rotas “regulares”, logo as “irregulares” são as únicas possíveis). Ali os seus pedidos de proteção internacional seriam processados. Se aprovados, os migrantes terão garantido o direito de ficar no Ruanda, não de serem aceites no Reino Unido.

Uma decisão que se dá a interpretações

É uma vitória para o Executivo, porém há nuances. O resultado prático não cumpre o propósito que Sunak desejava: agilização do processo, traduzida em maior rapidez no envio de pessoas. “O tribunal concluiu que é legal o Governo tomar providências para relocalizar requerentes de asilo no Ruanda e que os seus pedidos de asilo sejam determinados no Ruanda e não no Reino Unido”, afirmou o juíz Clive Lewis.

Logo depois acrescentou que “o Governo deve determinar se existe algo nas circunstâncias particulares de cada pessoa que signifique que o seu pedido de asilo deve ser avaliado no Reino Unido ou se há outras razões pelas quais essa pessoa não deva ser transferida para Ruanda”.

A decisão obriga o Ministério do Interior a considerar as circunstâncias individuais de cada um dos oito requerentes de asilo que, por ação do TEDH, acabaram por permanecer no Reino Unido. Resta saber se a tutela da dura ministra Suella Braverman terá de ter os mesmos cuidados com todos os casos futuros, ou seja, se a decisão, na sua aplicação, vai significar uma análise “caso a caso”. Se for assim, a ideia original do Governo (deportar os migrantes e só depois, já com eles no Ruanda, processar o pedido de asilo), será provavelmente impraticável.

Mesmo que os advogados do Ministério consigam provar que o pedido de asilo de migrantes deve ser e pode ser legalmente analisado no Ruanda, é pouco provável que consigam levar milhares de pessoas de cada vez. Quase um ano depois de assinado o acordo, que custou ao Reino Unido cerca de 140 milhões de libras (160 milhões de euros), nem uma pessoa foi deportada ao abrigo deste esquema.

A oposição à medida e a força da pressão da opinião pública e publicada, não surpreendem o Governo. Até a ONU criticou o esquema quando a então ministra do Interior, Priti Patel, o apresentou.

Muito antes de as propostas terem passado a lei, quando a deportação era uma de várias hipóteses “dissuasoras” para controlar a entrada de migrantes, dezenas de advogados e organizações não-governamentais tinham avisado o Executivo de que iriam recorrer à justiça para evitar a deslocação de pessoas para um país que fica a 6500 quilómetros daquele onde chegaram e onde tinham intenção de pedir asilo.

Um dos mais sérios problemas apontados pelos advogados é a opacidade do processo pelo qual os migrantes são escolhidos para deportação. Não está em nenhum documento público e os advogados e especialistas com quem o Expresso falou na altura da quase-deportação dos oito migrantes não conseguiram discernir muito mais do que o óbvio: todos são homens em idade ativa e quem chegou depois de maio de 2022 tem mais hipótese de ser enviado para o Ruanda.

O fim dos acordos de Dublin, mais um problema do Brexit

Para o Governo, o mais sério problema, também nesta pasta, chama-se “Brexit”. Quando o Reino Unido saiu da UE, não foi negociada uma alternativa ao tratado de Dublin, que estipula que um migrante que tenha primeiramente chegado, por exemplo, a um porto italiano ou espanhol, dois países considerados seguros, corre o risco de ser reenviado para esses países se for encontrado na Alemanha ou na Suécia, ou, outrora, no Reino Unido.

Ainda que haja dúvidas sobre se este esquema deve ser mantido (os países do sul dizem que não é justo serem sempre os mesmos a receber a esmagadora maioria dos migrantes só por causa da geografia), pelo antes do Brexitos britânicos tinham uma via legal para devolver pessoas que chegassem de França, através do Canal da Mancha. Essa possibilidade acabou e as medidas apresentadas para controlar o número de pessoas que entra no Reino Unido têm-se revelado cada vez mais “criativas”.

Um colete salva-vidas abandonado numa praia do sul de Ingaterra onde, em 2022, chegarm mais migrantes do que em qualquer outro ano desde que há registos
DENIS CHARLET/Getty Images

Pelo menos 40 mil pessoas tinham chegado ao Reino Unido em pequenos barcos até ao fim de novembro deste ano, o maior número registado desde que existe contagem.

Ao aumento do número de chegadas junta-se a morosidade na tomada de decisão em relação aos pedidos de asilo. “Se em 2018 foram registadas 300 entradas e agora temos 40 mil e o ano não acabou, temos um problema. Mas o que gera o caos é a lentidão no processamento. Temos cerca de 100 mil pedidos pendentes, 12 vezes mais que em 2014, quando o número de novos pedidos não aumentou o suficiente para justificar isto. As pessoas esperam uma média de ano e meio pelas decisões", disse ao Expresso, no fim de novembro, o especialista Peter Walsh, do Observatório para as Migrações da Universidade de Oxford.

As razões de preocupação dos especialistas

Alguns peritos continuam a considerar o memorando com o Ruanda ilegal à luz do direito internacional. É o caso das investigadoras Maja Grundler e Elspeth Guild, da Faculdade de Direito da Universidade Queen Mary, em Londres, que recentemente escreveram: “Quando se trata de requerentes de asilo que chegaram ao Reino Unido de forma irregular, estes indivíduos estão claramente dentro da jurisdição do Reino Unido e, portanto, beneficiam das obrigações do Reino Unido perante a lei de direitos humanos e refugiados”.

O memorando aplica-se apenas a indivíduos cujos casos de asilo não estejam a ser analisados pelos tribunais britânicos por terem sido declarados inadmissíveis, devido à entrada irregular destes proponentes no Reino Unido.

No entanto, continua o texto publicado na página de análise jurídica Direito Europeu de Migração e Asilo, “o artigo 31 da Convenção dos Refugiados isenta os refugiados de penalização por entrada irregular, reconhecendo explicitamente que a maioria dos refugiados não tem escolha a não ser viajar irregularmente”. Ou seja, tratar como inadmissível o pedido de asilo de um potencial refugiado só porque chegou através de canais considerados ilegais é ilegal. Logo, enviar estas pessoas para o Ruanda mediante esta justificação também o é.

A defesa do Governo

Quando a nova lei de Imigração e Fronteiras foi publicada, o Governo britânico apresentou a sua análise deste artigo 31, onde se lê que “a Convenção não obriga os Estados a facilitarem o acesso dos requerentes de asilo aos seus territórios nem especifica de que forma devem decidir se uma pessoa se qualifica para o estatuto de refugiado”.

No mesmo documento, o Governo argumenta que a frase: “(...) aos refugiados que cheguem diretamente (...)”, escrita no artigo 31, é que protege o Reino Unido nesta matéria, uma vez que pressupõe que os direitos da Convenção se estendam apenas a quem chega diretamente ao Reino Unido. Uma vez que não há possibilidade de pedir vistos humanitários para o Reino Unido sem ser em solo britânico, os advogados que defendem os migrantes dizem que este artigo é impossível de respeitar.

Uma visão aérea dos barcos que os migrantes utilizam para passar do norte de França para Inglaterra, pelo Canal da Mancha FOTO Ben Stansall/Getty Images

A nova lei indica que “uma pessoa não será considerada como tendo chegado diretamente se tiver parado noutro país no caminho para o Reino Unido, a menos que consiga provar ter motivo razoável para não ter pedido asilo nesse primeiro país”. É esta confusão que está na base destas lutas jurídicas, como está na base da decisão desta segunda-feira.

Em agosto, a presidente da Law Society, Stephanie Boyce, apresentou na Câmara dos Lordes as razões que levaram a prestigiada organização de advogados a emitir um parecer contra a parceria com o Ruanda. Além das potenciais violações da lei internacional, que se sobrepõe à britânica, Boyce chamou a atenção para a falta de proteção legal dos candidatos a asilo deportados.

“Nos termos no acordo, se os direitos humanos destas pessoas não forem respeitados no Ruanda, elas não têm forma de procurar justiça nos tribunais do Reino Unido, não podem pedir recurso nos nossos tribunais e nem o Reino Unido tem qualquer forma de garantir que os seus direitos sejam respeitados" no Ruanda.

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