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Uma carreira em pedaços e uma vitória para o movimento #MeToo na China: o que representa a condenação do cantor Kris Wu?

Uma carreira em pedaços e uma vitória para o movimento #MeToo na China: o que representa a condenação do cantor Kris Wu?
Getty Images

O estatuto de Kris Wu como uma das maiores estrelas no mundo da música chinesa não o protegeu de uma condenação a 13 anos de prisão por ter violado três mulheres. Para muitas ativistas feministas na China, esta condenação representa uma vitória do movimento #MeToo no país, há muito bloqueado por uma certa cumplicidade entre a Justiça e o Partido Comunista Chinês

Kris Wu, uma das maiores estrelas de música da China, foi condenado este fim de semana a 13 anos de prisão por um tribunal da capital chinesa de Pequim.

Originalmente detido em agosto de 2021, o cantor foi considerado culpado de ter violado três mulheres diferentes entre novembro e dezembro de 2020, e de ter praticado “atos libertinos em grupo” em sua casa, em 2018, com duas outras mulheres, disse o tribunal do distrito de Chaoyang.

A investigação foi aberta após uma mensagem nas redes sociais de uma jovem chinesa de 19 anos, Du Meizhu, que acusa Wu de a ter violado durante uma festa dois anos antes, quando Du teria apenas 17 anos.

Segundo a jovem, o músico tinha o hábito de convidar mulheres, por vezes menores de idade, para sua casa com a promessa de oportunidades de emprego. Depois, oferecia-lhes bebidas alcoólicas e induzia-as a terem relações sexuais.

As declarações do tribunal de Chaoyang espelham precisamente esta descrição: as vítimas terão sido violadas quando “estavam alcoolizadas e não sabiam ou não eram capazes de resistir”. Segundo a BBC, a investigação contou ainda com o contributo de outras 24 mulheres, que denunciaram o cantor após terem sido vítimas de assédio em condições semelhantes às que Du Meizhu descreveu.

Para além dos crimes sexuais, Wu foi ainda acusado de fraude fiscal, tendo, segundo as autoridades chinesas, criado uma empresa fictícia para esconder a escala dos seus rendimentos a nível global. Por isto, terá de pagar uma multa de 600 milhões de yuans, equivalente a cerca de 80 milhões de euros.

Depois de cumprida a sentença, será deportado para o Canadá, país onde viveu muitos anos e do qual é cidadão legal. Em resposta à CNN, a embaixada canadiana na China, que esteve representada na audição da sentença, disse estar atenta a este processo e defendeu que todos “os casos sejam tratados de forma justa e equitativa, de acordo com as leis internacionais e locais”.

Kris Wu em 2020 durante um evento da marca "Bulgari", da qual era embaixador, em Xangai
VCG

Kris Wu, conhecido na China por Wu Yifan, mantém a sua inocência até hoje, mas o certo é que a sua carreira sofreu um abanão significativo e provavelmente definitivo, pelo menos num futuro próximo.

Filho de pais chineses, passou a sua infância entre Guangzhou e Vancouver, no Canadá. Quando tinha 18 anos participou numa audição da empresa de entretenimento sul-coreana SM Entertainment, através da qual foi integrado na banda Exo, uma das mais populares de sempre na Coreia do Sul.

Seguiu-se o sucesso global, com o álbum “Overdose” dos Exo, lançado em 2014, a tornar-se o primeiro de uma banda sul-coreana a vender mais de um milhão de exemplares. Nesse mesmo ano saiu da banda e começou uma lucrativa carreira a solo, não só como cantor, mas como modelo e ator.

Entre 2014 e 2020, participou em filmes de ação tanto na China como nos EUA e contracenou com figuras como Vin Diesel ou Cara Delevingne. Na moda, destacou-se como embaixador de várias marcas de luxo internacionais, como a “Bulgari” ou a “Burberry”, na qual se tornou o primeiro asiático a ser nomeado embaixador global.

Tinha mais de 50 milhões de seguidores nas redes sociais, contratos de publicidade com inúmeras marcas e legiões de fãs por todo o mundo. Isto, até ser detido em agosto de 2021: as suas contas foram prontamente retiradas das redes sociais e da internet, tal como as suas músicas, e todas as marcas com quem trabalhava cortaram relações.

Muitos destes fãs, porém, inundaram as redes socais com mensagens de apoio em que defendem a inocência do músico. Uma das principais teorias sugere que Kris Wu está a ser usado para distrair o público dos inúmeros protestos contra as políticas de “covid zero” na China.

Sendo Wu um artista famoso, o caso gerou enorme interesse mediático na China, particularmente devido à natureza das acusações. No rescaldo do movimento #MeToo, muitas ativistas feministas chinesas protestaram que as autoridades não se têm mostrado suficientemente disponíveis para investigar casos de assédio sexual.

Desta vez, algumas ativistas vêm na condenação do cantor uma vitória para o movimento feminista, esperando que, agora, mais mulheres se sintam em condições para denunciar crimes e combater abertamente a aparente inoperância da Justiça chinesa neste tipo de casos.

Um episódio recente, porém, relembra que ainda têm um longo caminho pela frente: em 2018, Zhu Jun, um famoso apresentador de televisão no canal estatal CCTV, foi acusado de assédio sexual por uma ex-estagiária, Zhou Xiaoxuan, mas o caso foi arquivado por falta de provas após um apelo que viria a ser rejeitado.

Aqui, entra a dimensão política, sempre presente em todos os sectores da sociedade chinesa. Zhu tem um cargo de destaque no canal estatal, intimamente ligado ao Partido Comunista Chinês (PCC), o que o torna parte da classe política do país, facto que pode explicar alguma da morosidade em torno da sua investigação.

Zhou Xiaoxuan e apoiantes do movimento #MeToo na China à entrada de um tribunal em Pequim, em agosto de 2022
NOEL CELIS

De facto, o PCC parece disposto a apoiar o movimento #MeToo apenas quando a identidade dos condenados encaixa na narrativa do partido em relação ao que considera ser os elementos menos desejáveis da sociedade.

A saga legal de Wu trouxe ao de cima a veia anticelebridade das altas patentes comunistas, permitindo a Xi Jinping, Presidente da China, demonstrar que nem os ricos e famosos conseguem escapar ao braço da lei.

Citado pelo jornal norte-americano “The New York Times” em 2021, Guo Ting, especialista em estudos de género na Universidade de Hong Kong, sugeriu que a postura agressiva contra as celebridades, cuja preponderância na sociedade é tida pelo PCC como uma má influência para os jovens chineses, serve apenas para escudar os verdadeiros culpados.

Os comunistas estão “a visar os chamados ricos e poderosos, ao mesmo tempo que evitam o verdadeiro tipo de zona cinzenta que é a riqueza e o poder dentro da elite do partido”, disse Guo.

No entanto, uma condenação é uma condenação, defendem muitas ativistas feministas chinesas, revelando-se esperançosas em relação ao futuro da sua causa.

"Desta vez, foram feitos progressos muito subitamente, mas foi muito satisfatório", disse Li Tingting, uma ativista da igualdade de género em Pequim, na passada sexta-feira também ao “New York Times”. “Todos estão ansiosos pelo que irá acontecer no futuro.”

Texto de José Gonçalves Neves, editado por Cristina Pombo

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