Internacional

Ramos-Horta prevê convocar legislativas em Timor para maio de 2023 e conta com Lula para ajudar a pacificar a Ucrânia

O Presidente da República de Timor-Leste, José Ramos-Horta, durante uma entrevista à agência Lusa, em Lisboa, a 2 de novembro de 2022
O Presidente da República de Timor-Leste, José Ramos-Horta, durante uma entrevista à agência Lusa, em Lisboa, a 2 de novembro de 2022
JOÃO RELVAS/LUSA

Em entrevista à agência Lusa, Presidente timorense afirmou que “o Governo está a mostrar trabalho” e recusou ideia de dissolver o Parlamento. Pronunciou-se também sobre a guerra na Ucrânia, onde defende que se criem condições para recuos mútuos, e falou do polémico negócio de construção de um ferry para Timor na Figueira da Foz

Seis meses depois de ter assumido a presidência timorense pela terceira vez (depois de mandatos cumpridos e 2007-08 e 2008-12), José Ramos-Horta está satisfeito com o atual Governo, chefiado por Taur Matan Ruak. Entrevistado pela agência Lusa, o chefe de Estado afasta a ideia de dissolver o Parlamento, acusação de que foi alvo quando foi eleito Presidente, por ter sido apoiado por Xanana Gusmão, líder do Conselho Nacional de Resistência Timorense (CNRT) e opositor de Matan Ruak.

As eleições serão só “para o ano que vem, provavelmente em maio”, anunciou Ramos-Horta, frisando que vai ser preciso “consultar ou ouvir os partidos políticos”, como manda a Constituição.

Matan Ruak, que foi Presidente entre 2012 e 2017, governa desde 2018, embora o seu Partido de Libertação Popular tenha sido apenas o terceiro mais votado nas legislativas desse ano. Conta com o apoio do maior partido, a Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente (Fretilin). É, explica Ramos-Horta, um “governo geringonça”, como sucedeu em Portugal entre 2015 e 2019. “Em tétum, é governo aitonga, uma bengala em que a Fretilin surge a apoiar a continuação do Governo”.

Isso sucedeu a meio do mandato, depois de se ter rompido a coligação e Matan Ruak com Xanana. “Embora o partido CNRT se tenha sentido muito vexado com toda a situação, não reagiu com violência e decorreu tudo no círculo parlamentar”, lembrou Ramos-Horta.

O Presidente assegura que foi com diálogo que se ultrapassou a situação em que o partido de Xanana questionava a legitimidade da mesa do Parlamento, presidida por Aniceto Guterres Lopes, da Fretilin. “A política é assim, é a arte do possível”, remata.

Novo porto por 400 milhões

Foi do Governo de Xanana que o país herdou o projeto do porto de Tibar, orçado em 400 milhões de dólares (406 milhões de euros), que Ramos-Horta inaugurará no próximo dia 30. “O atual Governo manteve vários outros projetos”, como a modernização dos aeroportos de Díli e Baucau ou a conclusão dos cabos submarinos.

Sobre a tradicional baixa execução dos projetos anunciados, o chefe de Estado minimizou o impacto, até porque a “lei orçamental é muito rigorosa”. “Se conversar com o primeiro-ministro ou qualquer outra personalidade do Governo, dirão que ao Governo não interessa apenas a percentagem de execução”, mas “a qualidade de execução.”

Ramos-Horta desejou ainda que os timorenses recém-chegados a Portugal se integrem no mercado de trabalho e salientou que todos querem obter a nacionalidade portuguesa para poderem circular na União Europeia. “Os nossos jovens encontram logo um ambiente muito recetivo, muito solidário”, reconheceu, à margem de uma visita de vários dias. “Em Timor-Leste tem sido muito difícil, compreensivelmente, emitir passaportes, porque passa por um processo longo que é tratado em Portugal e a embaixada [portuguesa em Díli] não tem meios para isso”, admite.

Lamenta que muitos se deixem manipular por “agiotas” em Timor. “Compram bilhetes excessivamente caros”, com empréstimos “a juros de 100%”, diz o Presidente. A seu ver, o fenómeno das migrações deve ser entendido num quadro mais global. “Timor-Leste tem sido também destino de trabalhadores, de imigrantes ilegais, do Bangladesh, Paquistão, filipinos, indonésios e chineses.”

Cessar-fogo sem vincular cedências

Referindo-se à situação internacional, Ramos-Horta que recebeu o prémio Nobel da Paz em 1996, com o bispo Ximenes Belo — recordou uma conversa recente com o secretário-geral das Nações Unidas. “Estive com o engenheiro António Guterres há mais de um mês, e via-se na cara dele” que estava “muito preocupado, pessimista em relação à situação da evolução da guerra da Ucrânia”.

O mundo deve insistir “pelo menos num cessar-fogo”, sem vincular as partes a cedências permanentes, sem mais “movimentação de forças de um lado ou do outro”, o que permitiria “normalizar a situação das exportações e importações”, propôs Ramos-Horta. Quer confiar que haja “bom senso em Vladimir Putin” e julga que o Presidente russo recuará “se tiver incentivos para recuar”, até porque “está a arruinar a Rússia”. Também o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, não pode achar que vai “ganhar esta guerra com um maior envolvimento da NATO”, porque isso apenas irá “destruir mais ainda a Ucrânia e a Rússia”.

Ramos-Horta confia que o seu futuro homólogo brasileiro, Lula da Silva, possa não só pacificar o seu país como ajudar a resolver conflitos como o da Ucrânia. “Sempre revelou essa sua magnanimidade, esse seu sentido de pragmatismo”, afirmou Ramos-Horta. Vê “novo fôlego” para acudir a crises como a de Myanmar (antiga Birmânia), que “está numa situação catastrófica”, ou o mar do Sul da China, “excessivamente militarizado por todos” e onde a situação de Taiwan face à China “pode levar a imprudências”, porque os “conflitos às vezes acontecem por acidente”. Isso constitui, acredita, uma oportunidade diplomática para o Brasil, que integra o bloco dos BRICS com a Rússia, Índia, China e África do Sul.

“Quando foi eleito primeira vez e antes ser eleito primeira vez, há 20 anos, havia receios no sector empresarial e financeiro do Brasil e Washington, que temiam aquele background radical de sindicalista”. Ora, Lula foi “uma surpresa para todos”. Nos seus mandato, “a economia brasileira foi à estratosfera, pagou as dívidas ao FMI” [Fundo Monetário Internacional] e promoveu a “redução dramática da pobreza”.

“Com Lula, o Brasil vai ter que primeiro começar o diálogo com os seus vizinhos, com os Estados Unidos, restaurar as relações com a União Europeia e, em particular, com países como a França e Inglaterra, que estão no Conselho de Segurança”, mas também “falar com Putin, mobilizar o Presidente Erdogan, da Turquia, mobilizar a Indonésia, ou [o primeiro-ministro] Modi da Índia”, defendeu o Presidente timorense.

Nova oportunidade para cooperação lusófona

O chefe de Estado timorense referiu-se ainda ao processo da construção do ferry Haksolok, em que considera que o seu país foi “enganado”. A operação é das mais polémicas dos últimos anos em Timor-Leste, causando intensos debates entre sucessivos governos e partidos políticos. Ainda gera fortes críticas a Mari Alkatiri (primeiro-ministro à época do negócio) e à Região Administrativa Especial de Oecusse-Ambeno (RAEOA).

O contrato foi assinado com a Atlanticeagle Shipbuilding em setembro de 2014 e os trabalhos arrancaram em 2015, mas estão parados há anos. Depois de um pedido de insolvência, a AtlanticEagle Shipbuilding viu aprovado em 96% um Plano Especial de Recuperação, com os votos favoráveis da Autoridade Tributária, Segurança Social e do maior credor, precisamente a RAEOA.

Timor-Leste investiu 12 milhões de euros na aquisição de 95% dos estaleiros da Figueira da Foz, que estavam em insolvência e tinham praticamente como única empreitada o Haksolok, que devia ligar a capital timorense, a ilha de Ataúro e o enclave de Oecusse, no oeste do país.

“É uma segunda oportunidade que se dá aos estaleiros de Portugal. Espero que, das autoridades portuguesas e da empresa mista, agora haja muito maior profissionalismo, maior integridade para o benefício de Timor e dos estaleiros, com boa gestão, uma gestão inteligente”, afirmou José Ramos-Horta. Isenta de culpas o primeiro-ministro timorense que negociou o acordo, Mari Alkatiri, da Fretilin.

Ramos-Horta exorta Portugal a honrar o discurso que se repete a cada encontro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e lembra que o barco podia ter sido “encomendado facilmente na Coreia do Sul ou na China”. O orçamento inicial da embarcação, em 2014, era de 13,3 milhões de euros e este investimento global na Figueira da Foz terá agora que ser rentabilizado com outros projetos.

“Os estaleiros podem ser altamente rentáveis”, até porque “Portugal tem essa tradição de engenharia naval” e “não tem que ser necessariamente para fazer barcos para Timor-Leste, mas para o mercado internacional”, afirmou Ramos-Horta, que comparou a compra da empresa da Figueira da Foz com outros investimentos financeiros feitos com os dinheiros do fundo petrolífero. “É igual ao investimento que estamos a fazer nos eurobonds e no mercado internacional.”

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