É a terceira vez que pisa Lisboa, mas a primeira em que a capital portuguesa não era o seu destino final. David Grossman esteve no Porto, para uma conversa na Livraria Lello, conduzida pelo jornalista Valdemar Cruz. E agora, num dia entalado entre esse evento e o avião que o levará de volta a Israel, resolveu ser turista em Lisboa com a mulher, que o acompanha. Antes disso, aceitou falar com o Expresso.
O maior escritor israelita vivo não gosta especialmente que os jornalistas o interroguem sobre política. Mas está habituado a isso, não só por viver onde vive, mas sobretudo por ser um ativista em prol dos direitos dos palestinianos e de um caminho que conduza o seu país para a paz. David Grossman, autor de livros como “Um Cavalo Entra num Bar”, que ganhou o International Booker Prize em 2017, ou “Até ao Fim da Terra”, que estava a escrever quando perdeu o filho Uri, de 20 anos, na guerra de Israel contra o Líbano, em 2006, é frequente cronista do diário “Haaretz” e foi jornalista. Em Portugal, é editado pela D. Quixote.
Nascido em Jerusalém, em 1954, de pai imigrante polaco e mãe criada na Palestina Britânica, formou-se em Filosofia e Teatro na Universidade Hebraica. Foi o primeiro a dizer, com todas as letras e publicamente, que, sob o Governo de Netanyhau, o seu país estava a tornar-se num apartheid.
Dias antes das eleições em Israel, a quinta em apenas quatro anos, Grossman sabe que a política será o tema principal desta conversa, que publicamos a 24 horas do escrutínio que dirá se Israel está ou não preparado para recomeçar a falar de paz.
Deu uma entrevista ao Expresso em 2020 e nessa altura disse que um escritor não tem de ter qualquer compromisso político ou social além de contar uma boa história. Continua a pensar assim?
Ainda acredito nisso. Sei que não corresponde à ideia romântica do escritor capaz de mudar o mundo, mas há muito bons escritores, mesmo israelitas, sobre os quais desconheço as posições políticas, pois não as revelam. Sabem que existe umpreço em termos económicos e de popularidade se declararem, por exemplo, que são de esquerda. Mas o papel do escritor é contar uma boa história, não estar envolvido politicamente. No meu caso, isso acontece porque faz parte do meu caráter. Penso até que o facto de ser escritor influencia a minha atividade política. E tanto o meu lado literário como o político pertencem à mesma pessoa — a uma pessoa enojada por respirar o ar poluído que o conflito israelo-palestiniano instila continuamente.
Neste momento, alguém que tenha uma voz pública pode ficar calado?
É uma questão de temperamento. Há pessoas que preferem falar publicamente, outras não. E há quem tenha medo de expressar as suas opiniões. Sobre o mito do artista político, deixe-me contar-lhe uma história que foi uma espécie de lenda urbana durante a guerra do Vietnam: todas as sextas-feiras, havia um homem que aparecia em frente à Casa Branca com um cartaz contra a guerra, e a dada altura um jornalista perguntou-lhe por que o fazia, se acreditava mesmo que com a sua ação iria mudar o mundo. E o indivíduo respondeu: não tenho qualquer intenção de mudar o mundo, mas não quero que o mundo me mude a mim. Esta é a minha motivação. Olho para as pessoas em meu redor, pessoas de quem gosto, que aprecio, e vejo como a atual situação as mudou. Não alinharam com a direita israelita, mas encontraram o modo de reprimir o que pensam, de não se expressarem. Tentaram permanecer num lugar mais confortável. Mas paga-se um preço elevado por este conforto.
"A campanha, lamentavelmente, não tem nada a ver nem com questões morais, nem com a ideologia da direita contra a da esquerda, nem com a necessidade da ocupação. Tem somente a ver com estar-se ou não a favor de Netanyahu"
A esquerda israelita tem sido a voz que se opõe à política de ocupação e de apartheid, como uma vez lhe chamou. Acabou de dizer que isso hoje em Israel é anti-popular, como assim?
Muitas pessoas viraram para a direita porque estão desesperadas, porque a opção de existir paz entre nós e os palestinianos é cada vez mais remota. Confiam cada vez menos nos palestinianos e têm medo — e o medo guia-as para os extremos. Gente muito próxima diz-me que deixou de acreditar na possibilidade de paz, não porque pense que a direita está certa ou seja justa ou apoie os seus argumentos, mas porque simplesmente não consegue. Se olharmos para as notícias, cheias de atos de terror e de violência, isso é compreensível. Muita gente se esquece de que a situação não começou ontem, mas cem anos atrás. E quem vive toda a vida numa realidade violenta começa a pensar violentamente. Estas pessoas acreditam que quem viveu pela espada, tem de morrer pela espada. Quando mais cedo forem atiradas para o círculo da violência, mais cedo perdem a esperança e a capacidade de alterar alguma coisa. Há a tentação de desistir.
Nas sondagens, Benjamin Netanyahu está em primeiro lugar, com 60 assentos no Knesset — e precisaria de 61 para ter a maioria absoluta. O que se passará se os conseguir?
O primeiro que ele fará será certificar-se de que o seu julgamento por corrupção é suspenso, provavelmente criando legislação e tomando decisões que o assegurem. Ele não tem vergonha nem inibições em relação a isso. Em segundo lugar, irá continuar a inflamar a situação entre israelitas e palestinianos. Essa é a sua agenda, que as pessoas tenham medo dos palestinianos e sejam cada vez mais violentas e agressivas em relação a eles. Netanyahu foi primeiro-ministro ao longo de 12 anos seguidos, e não fez nada — mesmo nada — para melhorar a situação. Por vezes manteve as coisas como estavam, o que não é suficiente. Esta é a sua agenda e os seus métodos são muito transparentes. A facilidade com que manipula a opinião pública chega a ser insultuosa.
Quer acima de tudo salvar-se a si próprio?
Sim, e por esta razão é incrível que o resultado possa ser de 59, 60 ou 61 assentos. Em qualquer dos casos, isso mostra como a opinião pública tem vindo a ser dividida a meio e orientada. Não nos esqueçamos que se trata da quinta eleição presidencial em quatro anos, e a campanha, lamentavelmente, não tem nada a ver nem com questões morais, nem com a ideologia da direita contra a da esquerda, nem com a necessidade da ocupação. Tem somente a ver com estar-se ou não a favor de Netanyahu. O Estado inteiro está congelado por este assunto: se Netanyahu vai ou não ganhar.
Não se discute um projeto para o país.
Não interessa se há um projeto ou uma visão. O único que interessa é o lugar que esta pessoa extremamente manipuladora ocupa na sociedade — o lugar que a sociedade está ou não disposta a dar-lhe. Quanto mais Netanyahu é acusado ou alvo de suspeita, mais gostam dele por ser capaz de escapar a qualquer ‘cabala’.
Consideram-no um lutador?
É um lutador que não desiste mesmo quando todas as hipóteses estão contra ele. Porém, é também outra coisa: alguém que quer manter o país num estado extremo de perigo existencial.
Em 2021 foi aprovado um plano bastante ambicioso para melhorar as condições de vida da população árabe israelita. Esse plano está em perigo?
O que existe sobretudo são promessas. A realidade é que a maioria dos partidos do Knesset [Parlamento israelita] não quer aceitar que os partidos árabes sejam membros da coligação governamental. Consegue imaginar o que isso é? O que aconteceria se aqui em Portugal alguém dissesse: “quero fazer uma coligação, mas sem os judeus”? Isto é Israel. Por outro lado, a maioria dos partidos árabes não quer estar no Governo para não os considerarem traidores. No meio disto tudo, houve uma grande mudança simbólica quando Mansur Abbas [líder da Lista Árabe Unida que representa o partido no Parlamento] aceitou fazer parte da coligação Bennet-Lapid: era a primeira vez que um partido independente árabe integrava uma coligação governamental. Mansur reconheceu publicamente que Israel nasceu para ser a casa dos judeus — uma declaração inusual vinda de um líder árabe. Já escrevi muito sobre este assunto e cheguei a uma conclusão: enquanto a guerra entre Israel e os territórios ocupados continuar, os israelitas não terão nem a energia nem a generosidade para lidar com os palestinianos israelitas.
São questões distintas?
São, embora dependam uma da outra. Nomeadamente, porque entre eles existem relações familiares. Porém, só a resolução dos problemas de Israel e da Palestina nos territórios ocupados poderá libertar os palestinianos no interior do Estado de Israel. Porque Israel possui, e isto não se pode negar nem omitir, um quinto de cidadãos palestinianos, que têm o direito ser eleitos para cargos como o de primeiro-ministro. E que, embora sejam cidadãos como nós, são discriminados. Israel não consegue resolver estes dois problemas ao mesmo tempo. Tem de começar pelo da ocupação.
Olhando para o mundo, pensa que atingimos outro momento crítico da História? Imaginou que a guerra podia regressar à Europa?
Talvez por ser israelita, e por ter nascido entre pessoas que experimentaram tantos traumas e genocídio, estou programado para ver o perigo em qualquer esquina. E no que toca à relação entre a Rússia e a Ucrânia, e à invasão russa da Ucrânia em 2014, é quase impossível acreditar que estes dois povos pudessem continuar a viver lado a lado, em paz e harmonia. Há demasiada tensão, demasiados interesses contraditórios, demasiadas pessoas cuja existência depende de inflamar a situação entre ambos os países. Por outro lado, voltando ao tema de Israel, não é fácil ser otimista quando vemos como a guerra nos mudou e distorceu. Estamos todos programados pela guerra e não acreditamos que exista uma outra opção. A maioria de nós, se for empurrada contra a parede, irá admitir que fomos condenados a viver pela espada e a morrer pela espada. E mesmo alguém como eu, que conhece o medo da guerra e o preço que cada um paga por ela — perdi o meu filho na guerra contra o Líbano em 2006 —, sente cada vez mais dificuldade em agir contra a sua força gravitacional. O medo, aliás, tem uma força de atração que é acessível e até tentadora.
Tentadora?
Sim, porque justifica tudo o que fizermos, por mais louco que seja. Se dissermos a nós próprios que estamos num perigo existencial, temos o direito de ser violentos, cruéis ou brutais. É esse o poder de ser-se uma vítima. Se fores uma vítima, ninguém te vai culpabilizar por nada. Em nome do que te fizeram, pensas ter o direito de vingança.
A possível eleição de Netanyahu enquandra-se hoje numa tendência global de figuras fortes à direita. Exemplos disso são os EUA, o Brasil, a Rússia, dentro da UE a Itália e a Hungria. O que pensa disto?
Há uma onda de nacionalismos e populismos a percorrer o mundo. O caso mais difícil de compreender em termos de legitimidade é o de Donald Trump. Ele agiu contra a democracia, desprezando a lei e a ordem civil. Foi tão nocivo para tantos norte-americanos que o mero facto de ainda ter apoiantes e poder ser o candidato republicano às próximas eleições presidenciais é não só inacreditável como um péssimo sinal.
E os apoiantes não são poucos. O que procuram?
Querem reconhecimento, ser vistos. Sentem que foram privados de tudo o que os outros possuem e não percebem — ou não querem perceber — noções abstratas como globalização ou democracia. Pretendem ser recompensados por anos de descontentamento, e por terem estado fora das prioridades daqueles que os governaram. É um sentimento muito poderoso — não lhe chamaria amargura, nem sequer vingança. O que querem é ganhar para que lhes seja dado aquilo que lhes falta, independentemente da ideologia ou dos valores em causa.
Estão ‘contra o sistema’.
O sistema privou-os, riu-se deles, esqueceu-os. E agora eles próprios querem ser o sistema.
"Mesmo alguém como eu, que conhece o medo da guerra e o preço que cada um paga por ela — perdi o meu filho na guerra contra o Líbano em 2006 —, sente cada vez mais dificuldade em agir contra a sua força gravitacional. O medo, aliás, tem uma força de atração que é acessível e até tentadora"
Esteve numa guerra e perdeu um filho noutra, e disse que vive “numa família enlutada”. Isso dá-lhe uma perspetiva precisa do que as famílias ucranianas e russas podem estar a sentir e o efeito que isso terá nas novas gerações.
Todos os que fazem parte deste tipo de situações acabam por pagá-lo no futuro, e pesadamente. Não se sai ileso de tanta violência. Veja os jovens do exército russo que foram mandados para a frente e nem compreendem o que é suposto fazerem, porque deveriam estar a sentir ódio pelos ucranianos e a maioria não o sente, apenas sabe que foi manipulada. Veja toda a maquinaria da guerra, os truques habituais, como quando Putin faz um referendo para justificar a invasão do exército russo a estas regiões [do Donbas]. Vimos isto antes, e é quase insultuoso ver a sua repetição. Haverá sempre pessoas tentadas pela ideia da ‘honra nacional’. Mas quanta gente perdeu a vida em nome desta noção estúpida e destrutiva? E é tão fácil render-se a ela.
Enquanto cidadãos, o que podemos fazer para não nos rendermos?
Não creio que individualmente possamos mudar a realidade. Mas devemos fazer ouvir a nossa opinião. O governo russo deve ficar a saber que o mundo não aceita a sua brutalidade e despotismo. Não sei se mudaremos alguma coisa, mas temos a obrigação de perceber a gravidade da situação e que todos fazemos parte dela. Estamos sentados confortavelmente nas nossas casas, mas estas podem ficar muito frias no inverno. Talvez só sentindo o frio iremos compreender que a Ucrânia deve ser ajudada de todas as formas possíveis. Os políticos devem deixar bem clara a sua posição.
E qual poderá ser a posição de Israel se Netanyahu for eleito?
Não faço ideia. Mas fiquei muito contente quando, na semana passada, Israel sublinhou o apoio à Ucrânia, considerando inaceitável o comportamento russo. Israel não tinha dito isto nos primeiros meses do conflito. Somos uma nação pequena, como Portugal, e por isso temos a mentalidade de uma minoria, sempre à procura de um equilíbrio. Agora já não é tempo de equilíbrios, mas de dizer inequivocamente onde nos situamos.
Referiu que os seus pais, emigrados em Israel, têm a ‘psicologia dos refugiados’. Isso está a regressar? Estamos a criar uma nova geração com essas características?
Sim, é provável. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia há nove meses, a reação de Israel foi logo a de imaginar a abordagem mais conflituosa e beligerante possível. O pressuposto é que estar alerta e desconfiado faz parte da constituição da espécie humana. Não podemos culpar as pessoas por isso: foram moldadas pela II Guerra Mundial e pela Shoah. E perante a possibilidade de estarem de novo em perigo, toda essa experiência vem à superfície. A ‘psicologia dos refugiados’ é este constante pânico em relação ao futuro e a descrença de que se possa viver sem medo. Aproveitando-se disso, os líderes também se tornam mais beligerantes e provocadores. A questão aqui é como resistir a esta atitude automática e defensiva. Porque ter esperança, por mais remota que seja, significa que ainda nos lembramos do que a esperança é. Agora faça-me perguntas literárias [risos].
Há duas semanas, o escritor ucraniano Andrey Kurkov disse-me que neste estado de guerra, não está a conseguir escrever ficção. Imagino-o a si tendo a reação oposta. É assim?
Sei que, em certas alturas, me foi difícil escrever ficção. Por exemplo, nos primeiros meses da segunda Intifada. Mas, em geral, a minha forma de expressar o que sinto tem sido virar-me para a escrita. Não sei a razão. Apenas sei que, ao escrever ficção, estou também a dizer algo em termos políticos. Talvez porque escrevo sobre indivíduos que enfrentam a arbitrariedade, e sobre como a guerra afeta a vida privada dos indivíduos. Como a brutalidade da guerra separa as famílias e se reflete nesse microcosmos.
"Se dissermos a nós próprios que estamos num perigo existencial, temos o direito de ser violentos, cruéis ou brutais. É esse o poder de ser-se uma vítima. Se fores uma vítima, ninguém te vai culpabilizar por nada"
Nos seus livros, a par destas realidades nem sempre luminosas, há muito sentido do humor e da ironia. É um elemento importante para si?
A ironia sim, o cinismo não. A ironia é um modo de olhar para a realidade sendo nós também parte dela. Sermos irónicos em relação a algo é sermos irónicos em relação a nós mesmos. Uma das características o humor judeu é justamente essa capacidade de rir-se de si próprio. O cinismo, pelo contrário, significa um total desprendimento da situação ou da pessoa que descrevemos — significa não pertencer àquilo, zombar, manter uma distância de segurança. Eu não gosto de estar seguro nem de ser protegido. Por outro lado, há algo de cálido, de terno, no humor e na ironia.
A escrita pode ser também uma procura de beleza?
É que a beleza pode ser encontrada de tantas maneiras. Há rostos que um dia me pareceram horríveis e hoje me parecem belos. Penso que na escrita existe uma necessidade de precisão, de densidade. E esta precisão é um ato de beleza — a beleza de dizer a palavra certa, de encontrar a formulação adequada. No fundo, a beleza está na procura de transparência num mundo tão violento e paradoxal.
É assim que escreve? À procura da palavra certa?
É disso que se trata. Faço muitas versões, até compreender que excedi aquilo que queria dizer, que disse ‘demasiado’.
E como sabe isso?
É uma sensação física. A sensação de ter dito o que pretendia. Um romance está terminado quando sinto que se o continuar, se disser ainda mais, vou privar o leitor do prazer de descobrir coisas por si mesmo. No momento em que percebo que o leitor não deve saber mais do que já sabe, o trabalho está feito.
É fácil despedir-se de um livro acabado?
Não, é muito duro. Porque depois de quatro ou cinco anos a escrever sei tudo sobre as personagens, e poderia estar com elas para sempre, acrescentando mais e mais capítulos às suas histórias. E este é exatamente o momento de as deixar ir.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LLeiderfarb@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes