Irlanda do Norte vai a votos em dezembro, após sete meses de bloqueio político
O rei Carlos III visitou a Irlanda do Norte dias depois de subir ao trono, em setembro. Na foto veem-se, da esquerda para a direita, Michelle O'Neill (Sinn Fein), Jeffrey Donaldson (DUP), Naomi Long (Aliança) e Doug Beattie (UUP), numa receção no castelo de Hillsborough, em Belfast
NIALL CARSON/AFP/Getty Images
Unionistas e republicanos não se entendem para formar governo regional desde a última ida às urnas, em maio. Em causa estão as regras alfandegárias, que a saída do Reino Unido da UE veio perturbar
Os norte-irlandeses vão ser chamados às urnas, provavelmente em dezembro, pouco mais de seis meses após as últimas eleições regionais. O motivo é a incapacidade de unionistas e republicanos chegarem a acordo para formar um Executivo, onde, por lei, ambas as fações têm de estar representadas. O prazo legal terminou à meia-noite de quinta para sexta-feira.
Sinal desse impasse, o Parlamento da Irlanda do Norte não conseguiu eleger um speaker, responsável por conduzir os trabalhos, naquele que era o último dia para tal acontecer.
Assim, e tendo o Executivo britânico descartado a ideia de adotar legislação de emergência que altere as regras do jogo, Chris Heaton-Harris, ministro da Irlanda do Norte no Governo do Reino Unido, terá de agendar a votação. Esta sexta-feira declarou-se “extremamente desapontado”, pois “o povo da Irlanda do Norte merece um governo regional na plenitude de funções”.
A resistência ao pacto veio sobretudo do Partido Unionista Democrático (DUP, protestante e defensor da manutenção da Irlanda do Norte no Reino Unido), que dominou a política norte-irlandesa nos últimos anos, mas que nas regionais maio se viu ultrapassado pelo Sinn Féin (SF, católico e republicano, pró-reunificação irlandesa e outrora braço político do Exército Republicano Irlandês — IRA).
Paz implica pactuar
Em 1998 o Acordo de Sexta-feira Santa pôs fim a décadas de conflito sangrento entre católicos e protestantes. Estipula que ambas as fações tenham de estar no Executivo, representadas pelo maior partido de cada lado. O mais votado tem o cargo de primeiro-ministro, o segundo fica com o vice-primeiro-ministro, mas ambos têm idênticos poderes e a demissão de um implica a queda do outro.
O chefe do DUP, Jeffrey Donaldson, não se comoveu com apelos do novo primeiro-ministro britânico, apesar da proximidade política entre os unionistas e o Partido Conservador, agora chefiado por Rishi Sunak. O principal ponto de contenda é a fronteira aduaneira entre a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha, nascida por causa das decisões do ex-primeiro-ministro Boris Johnson no âmbito da saída do Reino Unido da União Europeia.
Sem acordo, manda a lei que o governo norte-irlandês em funções perca o mandato e sejam marcadas eleições num prazo de 12 semanas. A região está sem governo desde fevereiro, data da renúncia do último titular, Paul Givan (DUP), por causa das questões do ‘Brexit’. A data mais provável, escreve “The Belfast Telegraph”, é 15 de dezembro. Mas pode ir até 19 de janeiro.
Vida dos cidadãos está mais difícil
A presidente do Sinn Féin, Michelle O’Neil, culpou o DUP e Donaldson. “Esta confusão é dele, uma falha de liderança dele e do seu partido.” Assim, prossegue, os norte-irlandeses ficam “à mercê de um Governo conservador sem coração e disfuncional”. Isto quando, assegura, “a maioria de nós quer fazer o trabalho para que foi eleito”.
Acresce que em 2016, no referendo sobre a UE, a maioria (55%) da região votou pela permanência na UE, sendo “arrastada” para fora pelo voto maioritariamente eurocético dos ingleses, apoiado pelo DUP. Também na Escócia, 62% preferiam ter ficado na UE.
O’Neill seria primeira-ministra da Irlanda do Norte se houvesse acordo, cargo que o SF nunca ocupou. Os republicanos venceram as eleições de 5 de maio último com 29% dos votos e 27 deputados, contra 21,3% e 25 deputados do DUP.
A tensão entre comunidades dá sinais de cansar a população. Nas últimas eleições, o partido que mais cresceu foi o Aliança, que se posiciona para lá da dicotomia histórica. Subiu de 4,5% para 13,5% e de 8 para 17 deputados (num total de 90). A sua chefe, Naomi Long, censurou o DUP e o SF por não formarem Governo quando os serviços públicos do território estão “de joelhos”.
Long exortou Heaton-Harris a cortar o salário dos deputados norte-irlandeses até que haja acordo, classificando o que se passa de “circo”. E defende mesmo que Londres suspenda as instituições norte-irlandesas até estar concluída a negociação com a UE.
Outras formações políticas também lastimaram o bloqueio. Pelo Partido Unionista de Ulster, Doug Beattie alertou que mais zangados do que os políticos estão os 1,8 milhões de norte-irlandeses e teme que nunca volte a haver acordo para governar. “Vamos todos sentir essa ira nas próximas seis a sete semanas.”
Matthew O’Toole, do Partido Social Democrata e Trabalhista (SDLP, republicano), afirmou sentir “vergonha”, apesar de o seu partido não ter responsabilidade pelo sucedido. “Enquanto esta Assembleia fica em silêncio, com bolas de naftalina, as casas das pessoas ficam mais frias, a sua confiança na política decai e as suas vidas tornam-se mais difíceis.”
A pesada herança do ‘Brexit’
Quarta-feira Heaton-Harris reuniu-se com dirigentes das várias forças políticas da Irlanda do Norte, sem êxito. “Não cremos que tenha havido avanços suficientes”, explicou Donaldson. “Nas eleições recebemos um mandato claro para não nomearmos ministros para o Executivo até que seja tomada ação decisiva sobre o protocolo, para eliminar as barreiras ao comércio no nosso país e recuperar o nosso lugar no mercado interno do Reino Unido.”
O DUP sempre se opôs ao chamado Protocolo da Irlanda do Norte, com que Johnson, resolveu a questão da circulação de bens entre partes do Reino Unido. É que a Irlanda do Norte tem fronteira aberta com a Irlanda, aspeto crucial do acordo de paz. Ora, a Irlanda, membro da UE, cumpre a livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais com os demais 26 países.
A saída do Reino Unido da UE e do Mercado Único obriga a verificações de produtos nas fronteiras, que Johnson fez instalar no mar da Irlanda, isto é, entre a Grã-Bretanha e a Irlanda do Norte, ambas partes constituintes do Reino Unido. Os unionistas ficaram furiosos, até porque lhes fora prometido o oposto pelo Governo conservador de Londres.
Alastair Cambpell num jogo de futebol do Burnley, clube de que é adepto
Por este motivo e por outros (escândalos ligados à anterior primeira-ministra norte-irlandesa, Arlene Foster, e questões sobre o uso da língua irlandesa), em quatro dos últimos seis anos, Parlamento e Governo estiveram paralisados, com a administração pública em piloto automático tecnocrático.
Outra hipótese é Londres assumir controlo da região ou, opção já alvitrada pelo SF e tabu para o DUP, partilhá-lo com Dublin. O crescimento dos republicanos e a demografia (os católicos têm natalidade mais forte do que os protestantes) levantam a possibilidade de reunificação da Irlanda. É que o Acordo de Sexta-feira Santa prevê um referendo nesse sentido quando houver sinais de que é a vontade da maioria da população da Irlanda do Norte. Que, nesse cenário — que não está em cima da mesa no imediato — voltaria a fazer parte da UE.
Sem terceira via
Jonathan Caine, subsecretário de Estado da Irlanda do Norte e membro da Câmara dos Lordes, alertava quinta-feira: “Factos inconvenientes para algumas pessoas: o Acordo de Belfast de 1998 estipula duas opções constitucionais para a Irlanda do Norte: ou é plenamente parte do Reino Unido ou é plenamente parte de uma Irlanda unida. Não há terceira opção de ficar de alguma forma metade de cada lado.”
A Irlanda do Norte é um de vários dossiês territoriais que Sunak herdou ao assumir a chefia do Governo do Reino Unido. Outro é a exigência do governo nacionalista escocês de realizar novo referendo à independência.
Sunak nunca foi apoiante das ameaças de Johnson de violar unilateralmente o protocolo acordado com os 27 para a fronteira irlandesa. Teme que gere guerras comerciais que só agravariam a já delicada situação económica e financeira que se vive, pelo que prefere uma solução negociada. Mas a ala eurocética do Partido Conservador tem outra visão. O jornal “The Telegraph” compara o desafio do novo primeiro-ministro em Belfast como “fazer o cubo de Rubik vendado”.
Para Bruxelas, o duplo acesso da Irlanda do Norte aos mercados britânico e comunitário (incontornável à luz do Acordo de Sexta-feira Santa, que cumpre 25 anos em abril próximo) implica que o Tribunal de Justiça Europeu tenha de ser o árbitro de última instância em caso de conflito. O DUP e parte dos tories nem querem ouvir falar nisso.
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