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Entra Rishi Sunak, o reparador de confianças quebradas; sai Liz Truss, a obstinada. Nova mudança de poder no Reino Unido

Rishi Sunak à porta da residência oficial do primeiro-ministro, que ele agora deve ocupar, em Londres
Rishi Sunak à porta da residência oficial do primeiro-ministro, que ele agora deve ocupar, em Londres
Jeff J Mitchell/Getty Images

Liz Truss já tinha pedido desculpa pelo descalabro dos seus 44 dias de governo numa entrevista pouco antes de se demitir, mas quem for ouvir o discurso de despedida que fez esta terça-feira não notará qualquer pingo de arrependimento, antes pelo contrário. Pouco depois, no mesmo púlpito de onde Truss acenou aos seus apoiantes uma última vez, Sunak apareceu para a sua entrada em funções. Quer restaurar a confiança “depois de tudo o que aconteceu”, avisa que vêm aí “decisões difíceis” e soube encerrar o assunto “Boris” com classe

O primeiro discurso de Rishi Sunak como primeiro-ministro do Reino Unido foi tão curto como todas as outras intervenções públicas que tinha feito até aqui: quatro condensados minutos, nos quais colocou as pistas necessárias para que os britânicos comecem a tentar encaixar o que aí vem. E a mensagem principal foi clara. Estamos numa grave crise económica, disse Sunak, e “isto significa que haverá decisões difíceis”. Não é exatamente uma surpresa, dado o estado de coisas na Europa com a “guerra de Putin”, como a classificou o novo primeiro-ministro, a “causar graves disrupções nas linhas de abastecimento mundiais”.


Rishi Sunak a acender luzes tradicionais do Diwali à porta da sede do Tesouro, que é também a sua residência oficial
Leon Neal/Getty Images

Os primeiros-ministros conversadores costumam começar os seus mandatos a prometer baixar impostos, Sunak não o fez, focou antes o problema de contrair mais e mais dívida.

Uma das primeiras coisas que os analistas disseram logo quando se soube que Sunak tinha vencido a corrida dentro do grupo parlamentar conservador para ser novo líder foi que ele muito possivelmente terá de subir os impostos, não de os baixar, como qualquer conservador thatcheriano, que é o caso, gostaria.

Tanto o professor de política Tim Bale quanto o consultor em campanhas eleitorais Mike Buckley disseram então ao Expresso que não ficariam nada surpreendidos se Sunak, além disso, cortasse também na despesa do Estado - e por isso em alguns apoios sociais.

É isto que quer dizer “decisões difíceis”. Mas é também justo dizer que esta crise não é a primeira que Rishi Sunak enfrenta. Ainda nem fez um ano que o mundo começou a abrir-se de novo, depois de dois anos de pandemia. Ele foi o homem com as chaves do cofre durante todo esse tempo - e ninguém lhe pode chamar avaro. “Todos vocês me viram durante a covid, a fazer tudo o podia para proteger as pessoas e as empresas com ajudas como o layoff”. Mas “há limites”, frisou, “agora mais do que nunca”. Mais um aviso. E depois mais uma tentativa de tranquilizar: “prometo-vos que enfrentarei os desafios de hoje com a mesma compaixão.”

Sunak começou por dizer que a sua antecessora, Liz Truss, não esteve errada ao defender mais crescimento económico - “é um objetivo nobre”, disse o ex-ministro das Finanças -, mas “foram cometidos erros” e ele vai “consertar” o que foi feito. “O governo que agora lidero não deixará a próxima geração, os vossos filhos e netos, com uma dívida a pagar, apenas porque fomos fracos demais para pagar nós mesmos”, disse ainda, numa referência direta ao tal erro capital de Truss: alavancar a sua descida de impostos em mais empréstimos, e por isso num aumento da dívida.

Se há coisa que o primeiro-ministro, o quarto conservador no cargo desde o referendo do Brexit, em junho de 2016, tem presente é a necessidade de ganhar a confiança no povo.

Restaurar a confiança depois “de tudo o que aconteceu”

O escândalo das festas de Boris Johnson durante o confinamento, e nas quais Sunak chegou a ser apanhado e a ter de pagar uma multa por isso; a pressão sobre Johnson para que se afastasse e ele a ir mesmo assim ao Parlamento dia sim dia não garantir que não mentira sobre essas mesmas festas; a campanha ácida entre Sunak e Truss durante o verão, a libra a cair vertiginosamente depois das opções económicas da ex-primeira-ministra, todo o caos dos últimos quatro meses tornou o Partido Conservador numa espécie de caricatura de si mesmo, tema de stand-up comedy nos bares de Londres.

Sunak sabe que esse não é o lugar onde a maioria dos eleitores conservadores gostam de se ver. “Este governo terá integridade, profissionalismo e responsabilidade a todos os níveis. Entendo também que terei de lutar para restaurar a confiança, depois de tudo o que aconteceu. A confiança conquista-se - e eu vou conquistar a vossa”, disse.

Agradeceu depois a Boris Johnson a maioria que deu ao partido em 2019 (a maior desde Thatcher, em 1987) mas, ao agradecer, fechou dois capítulos. “O mandato que o meu partido herdou em 2019 não pertence a só uma pessoa, é algo que nos une a todos”, disse, arrumando os críticos que consideram a sua nomeação, sem eleições gerais, uma fraude democrática e também os saudosistas do antigo regime, como o próprio Johnson, que assim escusa de tentar reacender a aura de messias das maiorias.

Para o fim deixou as promessas que já vêm no manifesto conservador: um SNS mais forte, melhores escolas, ruas mais seguras, controlo sobre as fronteiras, proteção do meio ambiente, apoio às forças armadas, e, como não podia deixar de ser, “a construção de uma economia que abrace as oportunidades do Brexit”. Que oportunidades são essas e onde estão os dividendos económicos da liberdade que a saída da UE trouxe ainda nenhum dos quatro conservadores que governaram depois do Brexit soube dizer. “Juntos podemos alcançar coisas incríveis. Criaremos um futuro digno dos sacrifícios que tantos fizeram e encheremos o amanhã com esperança”, finalizou Sunak.

Truss parece não ver mesmo onde errou

Ao sair pela última vez do número 10 de Downing Street enquanto chefe de governo britânica, Liz Truss reforçou as ideias em que acredita. A doutrina pouco mudou nestes 44 dias em que esteve no cargo de primeira-ministra, apesar da oposição em massa dos seus próprios deputados, das sondagens, dos mercados.

Truss não pediu desculpa desta vez (fê-lo numa entrevista antes da demissão) e fica no ar a sua obstinação. Os que melhor a conhecem reconhecem-no como um dos seus principais traços de personalidade.

Ouve-se a agora ex-governante conservadora e a sensação é que se considera injustiçada, não errada. A citação que escolheu, do filósofo romano Séneca, mostra o espírito que a domina: “Não é porque as coisas são difíceis que deixamos de ousar fazê-las. É porque não ousamos fazê-las que elas são difíceis.”

Na rede social Twitter, comentadores políticos focaram o facto de Truss ter pensado pouco nas potenciais consequências negativas do seu mandato e do caos governativo dos últimos dias. George Parker, do “Financial Times”, escreve que é “incrível” deixar subentendido que o seu sucessor deveria seguir o seu programa económico de enorme sucesso. Alerta de ironia britânica.

A ex-primeira-ministra frisou que, “num curto período, o Governo agiu de forma decisiva e com urgência para mudar o futuro das famílias e empresas trabalhadoras.” Isso foi feito, segundo Truss, através da reversão do aumento das contribuições para a segurança social e do apoio às famílias para que pudessem as suas contas volumosas de eletricidade.

”Estamos a recuperar a nossa independência energética para que nunca mais fiquemos sujeitos às flutuações do mercado global ou a potências estrangeiras malignas”, disse Truss, que após o discurso rumou ao palácio de Buckingham para apresentar formalmente a demissão ao rei Carlos III.

Noutras intervenções, Truss referiu que o seu “miniorçamento”, onde apresentou medidas de corte de impostos para empresas e para os que mais ganham, foi “longe demais, rápido demais” mas tudo pareceu esquecido neste discurso de despedida. A mensagem mais importante do discurso (e nisso foi muito “Johnsiano”, no seguimento da doutrina de Boris Johnson) é que a política económica que apresentou está certa.

”Simplesmente não nos podemos dar ao luxo de ser um país de baixo crescimento, onde o Governo assume uma parcela cada vez maior da riqueza nacional e onde há enormes divisões entre diferentes partes do país”, disse, para depois finalizar com um apelo ao usufruto das liberdades do Brexit. “Precisamos de aproveitar bem as liberdades do Brexit para fazer as coisas de maneira diferente. Isto significa proporcionar mais liberdade aos nossos próprios cidadãos. E restaurar o poder das instituições democráticas. Isso significa impostos mais baixos para que as pessoas possam manter uma parte maior do dinheiro que ganham”.

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