Longe ficaram os prados calmos e frondosos das margens do rio Dee, onde Liz Truss passou uma manhã protocolar a ser indigitada pela rainha Isabel II. O cansaço de um verão em campanha permanente, a acrimónia que se soltou de confrontos com o adversário Rishi Sunak, a pressão dos meios de comunicação social, tudo isto é duro… mas agora começa o capítulo realmente importante da escalada ao poder da terceira mulher a chefiar um Governo do Reino Unido: governar, resolver problemas, atender ao clamor dos que têm cada vez mais dificuldade em pagar as suas contas.
Sob fortes aguaceiros, que levaram o pessoal encarregado de preparar os microfones e o púlpito a cobri-los primeiro com sacos de plástico e a optar por levar toda a mobília para dentro, Liz Truss foi fazendo o seu percurso, de carro, até Downing Street, seguido em direto por drones no céu. Quando chegou, já a intempérie esmorecera e pôde falar com apenas um leve chuvisco.
Dezenas de jornalistas, deputados e futuros ministros e secretários de Estado esperavam-na, debaixo de guarda-chuvas, mais ou menos à proporção de um para cada três pessoas. Alguns farão parte do seu Executivo, a nomear ao longo da tarde desta terça-feira.
Truss começou por prestar homenagem ao antecessor, como fizera quando foi conhecido o resultado da votação entre os militantes do Partido Conservador, que a elegeram líder. “Boris Johnson concluiu o Brexit, acionou o plano de vacinação contra a covid-19 e opôs-se à agressão russa. A História vai julgá-lo como um primeiro-ministro de muita consequência”. Em seguida, a primeira-ministra enalteceu as qualidades históricas do Reino Unido (“a nossa crença na liberdade, no empreendedorismo e no comércio justo”) e do povo britânico (“tem mostrado coragem e determinação, uma e outra vez”).
As dificuldades que se amontoam no caminho seriam sempre um tema central do discurso, e Truss enumerou algumas das áreas que considera mais urgentes para a reforma do país. “Agora é tempo de atacar os problemas que estão a atrasar o Reino Unido: precisamos de construir estradas, casas, e acesso à internet de banda larga. Precisamos de mais investimento e mais empregos em cada localidade do nosso país e precisamos de reduzir o fardo sobre as famílias e ajudar as pessoas a prosseguirem com as suas vidas. Sei que temos o que é necessário para atingirmos os objetivos, mas não vai ser fácil.”
Três áreas prioritárias
Como vai a nova primeira-ministra garantir que todos estes objetivos se materializem? Truss não deixou medidas concretas, apenas promessas, divididas em três áreas: impostos, custo de vida e saúde. “Em primeiro lugar vou pôr o Reino Unido a funcionar outra vez, com o meu plano para o crescimento económico baseado no corte de impostos e reformas, que visam recompensar o trabalho árduo e fomentar o investimento e crescimento liderado pelas empresas”, disse. Não explicou porque é que o país não funciona ao fim de 12 anos de governação do seu partido.
Logo depois, falou dos preços da energia e prometeu, ainda esta semana, “um plano para lidar com as contas de energia”. Em terceiro lugar, os planos para uma questão que figura quase sempre no pódio das principais preocupações dos britânicos: o estado do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês). “Vou garantir que as pessoas consigam marcar consultas médicas e ter acesso aos serviços de saúde de que precisam.”
Apesar de todas as dificuldades, a nova inquilina do n.º 10 de Downing Street finalizou o discurso com uma nota positiva: “Não devemos amedrontar-nos com os desafios que enfrentamos. Mesmo que esta seja uma tempestade forte, sei que os cidadãos britânicos são ainda mais fortes. Temos reservas enormes de talento, energia e determinação e confio que juntos vamos ultrapassar a intempérie”.
Mais uma sondagem negra
Minutos antes do primeiro discurso da primeira-ministra, que terá na quarta-feira o primeiro debate semanal na Câmara dos Comuns, a empresa de sondagens YouGov publicou uma sondagem dura para os conservadores: estão 15 pontos percentuais atrás do Partido Trabalhista, o que significa que a oposição aumenta a sua vantagem em sete pontos em relação à última medição (a 23 e 24 de agosto).
Os conservadores obtêm 28% das intenções de voto e os trabalhistas 43%. Os liberais democratas têm os mesmos 11% da semana passada, os verdes descem de 7% para 6%, o Reform UK (direita populista eurocética) caem de 5% para 3% e os nacionalistas escoceses continuam com 5%.
Os estudos de opinião têm sido quase todos desoladores para o lado conservador. Não falta, mesmo nas fileiras do partido, quem já fale da subida íngreme que se perfile diante dos pés de Truss. Ciente da urgência em apresentar trabalho, esta tem um plano para fazer face aos aumentos do preço da energia, que passa por impor um teto aos preços, financiado por impostos, mas não convence alguns especialistas na área.
Especialistas muito pouco otimistas
Enquanto Truss cumpria as suas obrigações na Escócia perante Isabel II, a Câmara dos Comuns recebia os avisos de organizações cujo trabalho se debruça sobre a ajuda a famílias carenciadas. O Instituto para os Estudos Fiscais também deu o seu contributo, informando os deputados de que será difícil ao Reino Unido desviar-se do caminho da recessão económica.
Torsten Bell, diretor executivo do grupo de estudos Resolution Foundation, afirmou que nem um pacote de resgate considerável protegeria totalmente as pessoas. “Mesmo com o grande anúncio político desta semana, as famílias ficarão mais pobres, porque muitos já não tem luxos que possam cortar para pagar as suas contas de energia. Isso é realmente preocupante.”
Já Clare Moriarty, diretora da organização Citizens Advice, similar à portuguesa DECO, disse que a crise do custo de vida já está a pesar sobre muitas famílias, não é cenário do futuro. “Estimamos que pelo menos uma em cada cinco pessoas não possa pagar as contas de energia em outubro se nada for feito. Ouvimos notícias sobre pacotes de apoio, mas no terreno já se vê um grande número de pessoas que simplesmente não conseguem manter as luzes acesas e comida na mesa.”
Tom Waters, economista no Instituto de Estudos Fiscais, falou da quase inevitabilidade de uma recessão. “Quando vemos a inflação atingir 10%, ou mais, mas os vencimentos das pessoas não acompanham esta subida, é óbvio que esperamos que isso se reflita nos gastos do consumidor na economia, quaisquer que sejam as medidas que venham a ser aprovadas. É difícil ver como se pode evitar um golpe bastante severo na economia”, disse aos deputados.
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