Internacional

Chile rejeita Constituição de esquerda e entra num dilema constitucional

Presidente Gabriel Boric a falar à imprensa depois do referendo deste domingo
Presidente Gabriel Boric a falar à imprensa depois do referendo deste domingo
reuters

A ampla diferença de votos contrários à nova Constituição registados no referendo este domingo é um duro revés para a esquerda e para o governo do Presidente Gabriel Boric, que deve ser remodelado em direção ao centro. A rejeição da atual Constituição, de 1980, imposta pelo ditador Augusto Pinochet, mas também da nova, redigida pela esquerda, abre um dilema constitucional de solução incerta

Por uma diferença muito superior à prevista por todas as sondagens, 61,86% dos eleitores chilenos (contra 38,14%) rejeitaram o texto da nova Constituição, redigida por uma ampla maioria de esquerda, e preferiram manter a atual, com forte pendor neoliberal.

"É um resultado muito claro e decisivo a favor da rejeição da nova Constituição. A conclusão é que os chilenos querem consertar o país, mas não querem refundá-lo. As pessoas sabem para onde querem ir e entenderam que a nova Constituição proposta não os levaria a esse lugar", traduz ao Expresso o sociólogo e cientista político chileno Patricio Navia.

O lugar pretendido é o Estado de bem-estar com Saúde, Educação, Habitação e Pensões como direitos sociais fundamentais em vez de serviços privados a serem contratados por cada cidadão.

Além disso, a Constituição agora rejeitada propunha um novo sistema político, com a eliminação do Senado, um novo sistema de Justiça, com tribunais indígenas paralelos, a possibilidade de reeleição presidencial, o direito ao aborto e um caráter de plurinacionalidade, entendido como um risco de surgir um Estado indígena paralelo.

"Basicamente, as pessoas querem coisas mais concretas, como os direitos básicos sociais e um sistema capitalista competitivo, com oportunidades para todos. Não muito mais do que isso", indica Patricio Navia.

Solução incerta

Com a rejeição da nova Constituição, instala-se um dilema. Uma ampla maioria da sociedade (78,3%) decidiu em 2020 que quer uma nova Constituição, em substituição da que está em vigor, imposta pelo ditador Augusto Pinochet em 1980 e considerada a razão principal da desigualdade social. Porém, outra ampla maioria (62%) decidiu neste domingo que não quer um texto radical de esquerda.

A solução precisará agora de passar pelo Congresso dos deputados, onde as forças de direita e de esquerda estão em paridade. As alternativas podem ser reformar a atual Constituição, redigir uma nova através de uma comissão de legisladores e notáveis ou convocar uma nova Assembleia Constituinte. Neste caso, seria a nona eleição desde 2020.

"Já não temos a certeza de nada. Só o Congresso pode decidir agora qual caminho a seguir. A direita sai mais forte, ao ganhar uma eleição de forma tão contundente e com ampla participação popular (87%). Veremos se a direita, que tem metade do Parlamento, aceita uma nova Constituinte", aponta ao Expresso Marta Lagos, diretora das consultoras de opinião pública Latinobarómetro e Equipos Mori.

"Posso dizer que o povo chileno está bastante cansado de eleições. E se esta Constituição não agradou aos chilenos, que certeza há de que a próxima vai agradar?", questiona.

Presidente enfraquecido

O Presidente Gabriel Boric, o segundo grande derrotado depois do texto constitucional, convocou os líderes da Câmara dos Deputados e do Senado para uma reunião no Palácio La Moneda na manhã desta segunda-feira,para começar a traçar uma saída para o dilema constitucional. À tarde, a reunião será com todos os partidos políticos, "para gerar um diálogo transversal sobre os desafios do processo constituinte", disse Boric na carta de convite.

"Prometo fazer tudo para construir, juntamente com o Congresso e com a sociedade civil, um novo itinerário constituinte que nos dê um texto que consiga interpretar a vontade da grande maioria", anunciou o Presidente depois da dura derrota no plebiscito.

Gabriel Boric quer impulsionar uma nova Constituinte, mas o resultado deixa-o enfraquecido para conduzir o processo. "Enfrentar os importantes e urgentes desafios requererá ajustes nas nossas equipas de Governo", admitiu.

"Esta é também uma derrota para Boric, que fez campanha a favor da nova Constituição. O forte golpe vai exigir uma reconfiguração da coligação de Governo", prevê Marta Lagos.

"Esta é uma derrota inapelável para a nova Constituição, mas também para o Governo. Gabriel Boric terá de fazer uma reforma ministerial, procurando propostas menos radicais do que as que teve até agora. No curto prazo, o desafio é a estabilidade do Governo", indica Patricio Navia, da Universidade de Diego Portales e da New York University.

Revolução diluída

Gabriel Boric tomou posse em março, com o planeamento de começar a governar com a nova Constituição a partir de agora. No entanto, se o país convocar uma nova Assembleia Constituinte, todo o processo poderá levar até dois anos, mantendo o Governo num limbo.

Os 53% de popularidade do Presidente quando foi empossado reduziram-se para 36% agora, um nível de aprovação em sintonia com os 38% favoráveis à nova Constituição.

"Isso demonstra que a nova Constituição ficou com o apoio da esquerda e não representava a totalidade do país. Vemos que foi a esquerda que votou a favor da nova Constituição,enquanto o centro e a direita votaram contra. Essa necessidade de moderação estará no debate político que começa nesta segunda-feira", acredita Patricio Navia.

O complexo cenário que se abre é de incerteza institucional depois dos maciços protestos, iniciados em outubro de 2019, que balizaram o caminho até aqui.

"Se olharmos retrospetivamente, foi romanticamente ingênuo ter pensado que fosse possível dar, num único salto, este passo gigante entre uma Constituição antiquada e autoritária e uma Constituição hipervanguardista, entre as mais modernas do mundo", reflete Marta Lagos.

"Agora teremos de recuar a um ponto intermédio. A questão é: quanto ficará um novo texto mais parecido com a Constituição de 1980 do que com a que foi agora rejeitada?", questiona.

"Não existem os direitos absurdos, mas existem os direitos que cada sociedade pode absorver, de acordo com a sua cultura. E há uma tendência conservadora nos povos. O que estamos a ver é que o voto conservador no Chile é forte e foi subestimado", conclui Marta Lagos.

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