Seminário sobre jornalismo cancelado em Cabo Verde após tentativa de afastar voz incómoda para Bissau

Fernando Pereira, correspondente em Bissau
As mais altas autoridades da Guiné-Bissau pressionaram a União Africana (UA) para impedir a presença do jornalista Aly Silva num seminário regional sobre Liberdade de Expressão e Acesso à Informação na África Lusófona. A iniciativa, que devia realizar-se na Cidade da Praia, Cabo Verde, entre 29 a 31 de agosto, acabou por ser adiada sine die.
A denúncia partiu do próprio Secretariado da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, um organismo da UA com sede em Banjul, na Gâmbia. No entanto, na mensagem endereçada aos convidados, a comissão apenas alegou “fatores alheios” à sua vontade para cancelar o evento. A fonte, que solicitou o anonimato, pôs diretamente em causa o papel do Presidente da Guiné-Bissau, Úmaro Sissoco Embaló, na tentativa de impedir a participação do jornalista na iniciativa.
É possível que Embaló tenha intervindo nesse sentido, uma vez que é conhecida a sua proximidade com o seu homólogo senegalês, Macky Sall, atual presidente em exercício da UA. O líder guineense também tem relações estreitas com o influente general Muhamadu Buhari, chefe de Estado da Nigéria, uma das potências do continente.
Foi graças a estes apoios que em 2021 conseguiu que o seu maior rival político, Domingos Simões Pereira — líder do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), a maior força política guineense, e ex-secretário executivo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa — fosse afastado da chefia de uma missão de observadores da UA às eleições presidenciais em São Tomé e Príncipe, para a qual tinha sido convidado pela própria organização continental.
Contactado pelo Expresso, o representante da UA em Bissau, o diplomata são-tomense Ovídio Pequeno, admitiu ter sido informado da organização do seminário. Afirma, porém, ignorar as peripécias que conduziram ao cancelamento da iniciativa na capital cabo-verdiana.
Por seu lado, Aly Silva, o jornalista visado pelas autoridades de Bissau, confirmou a informação relativa à oposição do poder guineense à sua presença no seminário, que tinha por objetivo promover a sensibilização e divulgação da Declaração sobre Princípios de Liberdade de Expressão e Acesso à Informação em África, em particular nos Estados lusófonos. Silva considerou o incidente revelador do “desprezo pela liberdade de expressão” na Guiné-Bissau.
Antigo colaborador do extinto semanário “O Independente”, Aly Silva é editor do blogue mais popular do país, Ditadura de Consenso. É uma das vozes críticas mais irreverentes e corajosas do jornalismo guineense. Escapou a pelo menos duas tentativas de assassínio e, em março de 2021, foi sequestrado em pleno centro da capital, espancado e depois abandonado sem sentidos à beira do rio Geba, que desagua na cidade. Mesmo assim, não deixou o país.
Silva também é conhecido pela sua proximidade ao líder da oposição na Guiné-Bissau, Domingos Simões Pereira. Este foi chefe de Governo entre 2014 e 2015.
O Sindicato dos Jornalistas e Técnicos da Comunicação Social da Guiné-Bissau (SINJOTECS) está a par do incidente e a apurar os factos junto de parceiros, antes de tomar posição. Ainda assim, a sua presidente, Indira Correia Baldé, jornalista da delegação da RTP África em Bissau, declarou-se preocupada com o que considera mais um atropelo à liberdade de opinião, num país onde os atentados e perseguições contra jornalistas permanecem impunes e são apelidados pelas autoridades policiais de “casos isolados”.
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