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“A verdadeira Liz Truss por favor que se levante.” Reviravoltas na opinião e um Rishi Sunak cafeinado marcam noite de “debate”

O painel de analistas da Sky News resumiu assim as duas horas de perguntas a Rishi Sunak e Liz Truss, feitas à vez tanto pelo público como pela moderadora: faltou detalhe. Os dois candidatos à liderança do Partido Conservador e do Governo britânico es tiveram dificuldades em apresentar medidas específicas para solucionar o problema da inflação, mas a ministra dos Negócios Estrangeiros teve também momentos em que não conseguiu sequer sustentar as suas próprias medidas

Liz Truss e Rishi Sunak voltaram esta quinta-feira à televisão, desta vez na Sky News, mas não se confrontaram diretamente. Durante cerca de meia hora responderam a perguntas da plateia, totalmente preenchida por militantes do Partido Conservador. São eles, e não todos os eleitores britânicos, quem irá escolher o novo primeiro-ministro ou primeira-ministra do Reino Unido.

No resto do tempo, Truss e Sunak foram entrevistados pela jornalista Kay Burley, também ela com momentos de protagonismo, como quando pediu: “A verdadeira Liz Truss por favor que se levante”, frase que, traduzida em inglês Will the real Liz Truss please stand up?remete para uma letra de uma música de astronómico sucesso do rapper Eminem, “The Real Slim Shady”.

Um pedacinho de cultura pop imediatamente reconhecível é forma de aliviar as nódoas negras que o questionário duro deixou em Truss, que continua a encabeçar as sondagens e até aumentou a margem no último estudo do instituto YouGov. A plateia riu-se, a candidata também, mas na origem desta frase estão plasmados os seus maiores problemas na luta pelo n.º 10 de Downing Street: inconsistência e aparente desconhecimento das pastas, inversões de marcha em relação ao que já defendeu e falta de capacidade de explicar, com detalhe, as suas medidas ou como irá financiá-las.

De onde vêm 8800 milhões?

O momento mais complicado para Truss, até porque o espectador que lhe dirigiu a pergunta parecia enervado, foi a incapacidade de defender um número apresentado há menos de 12 horas: 8800 milhões de libras (10.400 milhões de euros) extra no orçamento do Estado, financiados por cortes nos salários dos funcionários públicos que residem fora de Londres.

Funcionários públicos, leia-se: enfermeiros, polícias e professores, profissões que a equipa de Liz Truss indicou na nota de imprensa a anunciar a proposta. Foi por aí que os seus críticos pegaram. Não soa bem retirar dinheiro a professores, polícias e enfermeiros. Tão mal soou que Truss abandonou a intenção de implantar esta ideia, menos de 24 horas depois de a ter lançado. E confirmou isso mesmo por entre perguntas no pequeno ecrã, confrontada por um potencial eleitor e uma jornalista.

Tampouco conseguiu explicar exatamente como tinha chegado ao valor em causa. “Não tenho os detalhes”, admitiu, enquanto denunciava os que “interpretaram mal a medida”.

Sunak haveria de passar pelo mesmo, mas Truss teve momentos em que pareceu demonstrar insensibilidade, nomeadamente quando disse que os acionistas das grandes empresas também têm de se preocupar com as reformas, não são só homens de fato, como se vê no vídeo abaixo, de um britânico claramente indignado.

“Acusou-me a mim”

A moderadora não deixou passar a crítica aos meios de comunicação e perguntou se estava a tentar passar culpas para outras pessoas, algo que Truss negou. Burley reforçou: “Acusou-me a mim”. Truss deu a volta dizendo que sabe dizer quando está errada porque é “honesta e aberta”. E teria de reconhecer outras falhas, como a promessa que fez em 2019 de promover a construção à volta da zona verde de Londres. Foi outra medida que abandonou recentemente, prometendo antes analisar as possibilidades de cada região.

Truss foi militante dos Liberais Democratas, já foi contra a monarquia (agora não é e não pediria desculpa à rainha por ter dito que a instituição devia acabar), e também foi contra o Brexit. Agora jura que foi bom o Reino Unido ter saído da União Europeia.

Impostos no centro do debate

Impostos e inflação foram de novo tema central, como nos debates anteriores, quer os transmitidos na televisão quer os que têm acontecido por todo o país junto de potenciais eleitores, os chamados hustings, prática comum na política britânica. Questionada por uma espectadora sobre a fatura que os seus filhos e netos teriam de pagar se o Reino Unido continuasse a pedir dinheiro nos mercados internacionais, Truss manteve o seu ponto: acha errado começar a equilibrar as contas “após uma crise mundial como a pandemia”.

A ministra refere que “muitas empresas” com as quais se tem reunido “mostram grande preocupação com propostas para aumentar os impostos”. A mensagem económica de Truss pode resumir-se numa sua frase: “Não podemos tributar o nosso caminho para o crescimento”.

Questionada sobre um imposto sobre os lucros excessivos das empresas de energia, como a Shell (lucro de 9100 milhões de libras, ou 10.800 milhões de euros), Truss nega que impostos sejam a solução, mesmo os impostos windfall, um tipo de imposto extraordinário, acionado uma só vez ou apenas em alturas de lucros súbitos, normalmente relacionados com tumultos geopolíticos.

George Parker, jornalista do “Financial Times”, antecipou na rede social Twitter os problemas de Truss. “Como é que vai explicar, no seu primeiro orçamento, porque não pode ajudar as famílias que enfrentam contas de energia em espiral depois de cancelar um aumento de impostos de 17 mil milhões [20 mil milhões de euros] às grandes empresas lucrativas e de se recusar a impor um novo imposto sobre grandes empresas petrolíferas?”.

Na política externa, Truss foi pressionada por um eleitor conservador que praticamente lhe exigiu a promessa de que vai tentar alcançar um acordo de paz na Ucrânia. A concorrente à chefia do Governo não considera isso possível para já. “A guerra só vai acabar quando os russos deixarem a Ucrânia, porque se houver um acordo de paz fracassado, se houver qualquer cedência de território, o que a História ensina é que a Rússia voltará”, disse, defendendo o envio de armas para Kiev.

Sunak “em esteroides” garante mais aplausos

Ex-ministro das Finanças, um dos políticos mais ricos no Reino Unido, Sunak não teve problemas com qualquer das perguntas que lhe fizeram. Ao contrário de Truss, manteve tudo quanto defendeu no passado. Afirmou até que só se pode falar de cortes de impostos a longo prazo, como sempre defendera.

Primeira pergunta do público: As sondagens mostram uma vitória de Liz Truss e os grandes nomes conservadores têm dado apoio a Liz Truss. Pensa desistir”. Reage Sunak: A resposta rápida é ‘não’. Estou a lutar por algo em que acredito mesmo. Aplausos.

Sobre a reforma do sistema nacional de saúde, Sunak voltou a defender uma “multa” de 10 libras (11,9 euros) para quem faltar duas vezes a consultas e uma “linha de financiamento” não só para hospitais mas também para a assistência social. Truss defendera a descentralização e corte de posições de chefia, algo que logo depois negou que fosse fazer.

No momento em que se mostrou mais duro, de longe, Sunak garantiu que vai mudar a definição de “asilo” no Reino Unido, hoje “aproveitada por advogados de esquerda” para deixar entrar mais pessoas. Promete ser “radical”, diz que vai intervir para que seja possível “retirar mais pessoas” do país.

As chegadas de migrantes ao Reino Unido pelo canal da Mancha tem atingido níveis muito mais altos do que em 2020 e 2021 (700 pessoas na quarta-feira, número mais alto em apenas um dia em 2022). Sunak não mostra intenção de amenizar as políticas da ministra do Interior, Priti Patel, que desenhou o plano de enviar candidatos a asilo para o Ruanda.

Sunak promete manter essa política, apesar de custar ao contribuinte 120 milhões de libras (142 milhões de euros) e de ter recebido oposição feroz de dezenas de organizações não-governamentais, advogados de direitos humanos e imigração e associações de apoio a requerentes de asilo. Acresce que o Governo ruandês anunciou no mês passado não ter capacidade para receber mais de 200 migrantes. A posição de Sunak surge apesar de se afirmar produto da extraordinária generosidade do Reino Unido no acolhimento de imigrantes, como os seus pais.

Ian Burrell, repórter de conflito e outros temas internacionais, escreveu um texto em que refere que o ex-ministro lhe disse que concordava com uma abordagem mais moderada à questão de asilo e migrações, mas optou por mudar para uma linha mais dura por motivos que Burrell considera populistas.

Interrogatório cerrado

Sobre a economia e o custo de vida, Sunak parece afastar para já a possibilidade de “pedir mais dinheiro” ou “cortar nos impostos” e diz, preto no branco, que Truss está errada no que toca à definição de recessão: para Sunak, o que pode causar maiores danos nas contas das famílias é a inflação e não os impostos.

A parte das perguntas de Burley foi a mais complicada para Sunak. Apesar de ter apresentado respostas mais consistentes, não foi fácil sair a brilhar do interrogatório da jornalista, extremamente bem preparada, com números sempre à mão, citações e promessas recentes dos candidatos, e incongruências várias a apontar-lhes.

“Um dia disse que não tinha amigos da classe trabalhadora, agora já tem?”. Resposta: “Eu era um miúdo, disse uma coisa parva”. Burley: “Mas já tem?”. Sunak: “Acho que sim, mas não ando a perguntar”. Mais aplausos. Sobre a sua riqueza pessoal e as contas offshore de uma empresa da qual foi cofundador, negou ter tido algum tipo de lucro não tributado.

No fim, os espectadores participaram numa sondagem rápida, de braço no ar, porque a tecnologia que tinham nas suas cadeiras falhou. Sunak venceria por maioria norte-coreana se fossem apenas estes 60 conservadores a votar. Mas não são, são cerca de 160 mil militantes que devem começar a receber os seus boletins de voto esta semana. Podem votar até 2 de setembro, por via postal ou digital, e o resultado é conhecido dia 5.

A moderadora perguntou à plateia se o sistema é justo, já que 99% do país não pode decidir o futuro líder. Todos responderam que sim, quase em simultâneo, porque, disse um dos eleitores convidados para o programa, o sistema parlamentar do Reino Unido manda que se elejam deputados e não primeiros-ministros. Ora, os conservadores conseguiram uma maioria absoluta em 2019, com mais 80 deputados do que toda a oposição somada.

Resta saber quem irá defrontar os trabalhistas nas urnas daqui a dois anos. Sunak acabou a sua intervenção garantindo que, se for eleito, vai conseguir renovar o mandato conservador. Nas pequenas entrevistas que os repórteres da Sky foram fazendo fora do estúdio antes da emissão especial, muitos tories parecem mais inclinados para Truss. Os que admitiram preferir Sunak tinham, porém, uma queixa: o pouco que o ex-ministro das Finanças tem falado do layoff que ajudou milhões de britânicos ao longo de dois anos de pandemia.

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