O contacto com veados, cabras, javalis e corços que transportam a carraça que é vetor do vírus está na origem da transmissão para as pessoas. As carraças hospedeiras do vírus são, sobretudo, as que se alimentam do sangue de coelhos, lebres, aves, vacas, veados, javalis e cavalos, principalmente no Sudoeste da Península Ibérica, como na Andaluzia, na Estremadura espanhola, em Castela-Mancha, no Alentejo e no Algarve. No entanto, a picada da carraça não é a única forma de a espécie humana ser atingida.
Francisco Ruiz-Fons, epidemiologista veterinário do Instituto de Investigação em Recursos Cinegéticos, explica ao Expresso que “uma pessoa infetada pode transmitir o vírus a outra pessoa através do sangue, saliva e outros fluidos”. A sintomatologia, no ser humano, inclui a febre, as tonturas, as náuseas, os vómitos, a taquicardia e hemorragias. A doença também provoca trombocitopenia, uma queda acentuada das plaquetas no sangue que desencadeia hemorragias. Pode ainda afetar o fígado, espoletando a insuficiência hepática.
“Algo aconteceu nos últimos 10 a 15 anos”
Em Espanha, já foram detetados dez casos desta patologia, dos quais três resultaram em morte. As autoridades de Saúde Pública acreditam que já terão acontecido outras infeções antes de 2013 e admitem que a situação inspira preocupação. O vírus pode mesmo ser emergente no país, além de ter potencial para causar sintomatologia grave e letalidade em pessoas na faixa etária dos 30 aos 40 anos. Francisco Ruiz-Fons detalha que “três ou quatro pessoas em cada dez que tenham a doença podem morrer”.
É preciso recuar à década de 1980 para encontrar registo, em território português, de duas pessoas já com anticorpos contra este vírus. Apesar de o vírus da febre hemorrágica da Crimeia-Congo estar presente em Espanha e Portugal “há muito mais tempo” do que há seis anos, “o aparecimento da doença parece ser recente”, alerta o epidemiologista espanhol. “Algo aconteceu nos últimos 10 a 15 anos para que surgissem casos clínicos da doença”, reconhece.
Um estudo desenvolvido pelo Centro Nacional de Microbiologia espanhol, em colaboração com o Ministério da Saúde do país, revelou que, em média, 2,9% das carraças é portadora do vírus. Em algumas áreas, essa proporção chega aos 25%. “Estamos a tentar descobrir como essas percentagens variam e por que motivos, para criarmos mapas de risco que demarquem as áreas de maior risco no espaço e no tempo”, adianta Francisco Ruiz-Fons.
Carraças “não conhecem fronteiras”
Ainda que sem alarmismo, Luís Varandas, do Instituto de Higiene e Medicina Tropical e da CUF – Descobertas, assume que, para Portugal, a situação, “de momento, não é preocupante, mas é para estar atento”. O especialista em Medicina Tropical rememora que os primeiros casos em Espanha “criaram um grande impacto mediático em 2016”, com muitos pacientes a terem de ser isolados. Desde então, Espanha instalou uma rede de vigilância, o que Luís Varandas saúda, também porque em localidades de fronteira, como Cádiz e Elvas, podem ocorrer casos que coloquem Portugal em alerta. “As carraças não conhecem fronteiras. Se estão do lado de lá, também estão do lado de cá.”
“Os espanhóis recomendavam: ‘Se encontrar uma carraça, entregue-a às autoridades.'” Luís Varandas argumenta que a Organização Mundial de Saúde (OMS) considera esta doença “uma das que potencialmente pode eclodir e evoluir para muitos casos entre humanos”. A febre hemorrágica da Crimeia-Congo é assinalada pela OMS como uma das doenças infecciosas emergentes mais importantes e como prioritária, pelo seu potencial pandémico. O médico lembra que, tal como o SARS-CoV-2, o vírus da febre hemorrágica da Crimeia-Congo, pode sofrer muitas alterações. “Os vírus de RNA têm muitas mutações. Se se alterar no sentido da maior facilidade de infetar as pessoas, pode gerar surtos.”
É o que também defende Francisco Ruiz-Fons. “É um vírus que possui um genoma dividido em três fragmentos de RNA. É um grupo de vírus com uma taxa de mutações muito alta e, portanto, com grande capacidade de adaptação. Os vírus que temos em Espanha – e em Portugal – são diferentes dos de outras regiões. A Península Ibérica é também uma zona de intenso cruzamento entre genótipos de vírus europeus e genótipos de vírus africanos, uma vez que as aves migratórias trazem para a Península Ibérica milhões de carraças todos os anos, muitas das quais infetadas com o vírus de origem africana. É o que deve estar a acontecer há milhares de anos, e é por isso que, na Península Ibérica, temos genótipos europeus, africanos e mistos.”
“Muito dificilmente um vírus que é transmitido por carraças se torna pandémico”
O virologista Pedro Simas acredita, contudo, que, por o vírus estar “muito bem identificado” e ter presença “endémica em muitas partes do mundo (no Mediterrâneo, na África Central e nos países da Europa de Leste”, o mais provável é que a situação esteja sob controlo. “No fundo, é o habitat das carraças que determina, em termos de latitude, a intensidade desta doença. A carraça transmite, a determinados hospedeiros selvagens e domésticos, como as cabras e as vacas, aquilo que, no fundo, é uma doença ocupacional. Os pastores, as pessoas que lidam com o gado, as pessoas que trabalham nos matadouros podem contrair a infeção.”
A doença estará, por isso, “perfeitamente delimitada”, ainda que tenha “sempre uma certa incidência ou prevalência todos os anos”. O diretor do Católica Biomedical Research Institute sustenta que esta febre hemorrágica apresenta altos índices de mortalidade e morbilidade, “mas não é, em si, uma doença que se torne uma pandemia”.
“Em todos os vírus há mutações, sempre houve, ao longo da História da Terra e da biologia. Não há nada de novo neste vírus. Muito dificilmente um vírus que é transmitido por carraças se torna pandémico. Não tem um potencial pandémico que se possa comparar a uma gripe ou mesmo a um coronavírus. É possível que apareça em Portugal, mas em casos isolados.”