Internacional

2500 páginas que contam abusos sistemáticos de migrantes às mãos de várias polícias europeias

2500 páginas que contam abusos sistemáticos de migrantes às mãos de várias polícias europeias
Socos e pontapés, choques elétricos, humilhação física e verbal ou roubo de bens pessoais são métodos de dissuasão da imigração usados por algumas das forças policiais que patrulham as fronteiras da União Europeia. Milhares de pessoas são devolvidas todos os anos aos locais de onde vieram sem poderem pedir asilo - uma quebra da lei internacional que não é nova nem rara. O Expresso analisou mais de 2500 páginas sobre estes reenvios e falou com duas pessoas que tentaram fugir dos seus países mas foram expulsas antes de conseguirem explicar porquê (Republicação do trabalho primeiramente impresso na revista E de dia 10/10/2020)

Custo do lugar num navio de médias ou grandes dimensões com duas paragens ou menos - €5000. Matiullah já solicitou esta tabela de preços noutros momentos de desespero. De cada vez que há uma rusga em Istambul para deportar afegãos, de cada vez que a família lhe conta como escapou a mais uma atrocidade talibã, Matiullah informa os traficantes que está pronto para ser colocado na lista de espera por um embarque fantasma - e no regresso da mensagem vem a atualização de preços.

Já percorreu as hipóteses mais em conta mas recusa-se a entrar mais alguma vez num daqueles barcos de borracha sem nada que os distinga dos que as crianças usam para brincar numa piscina. E por terra também lhe faltam forças para continuar a tentar.

Não quer passar nem mais uma noite a dormir numa floresta escura, com aqueles vultos que não sabe o que são nem de onde vêm e que agora lhe aparecem também nos sonhos. Não vai dormir outra vez debaixo de camiões ou dentro de arcas frigoríficas, nem esperar deitado no tecto de um comboio com a roupa gelada colada ao corpo dorido das sovas.

Agora Matiullah quer uma fuga a sério e está a juntar dinheiro para pagar a quem o consiga meter no tal cargueiro, um cargueiro grande onde não o apanhem, uma forma direta de chegar a Itália. É para isso que o afegão de 23 anos trabalha clandestinamente em qualquer coisa que lhe ofereçam em Istambul, onde vive não porque escolheu. “Sei que me podem prender, bater, que me posso afogar, mas o que posso eu fazer na Turquia, onde não aceitam mais pedidos de asilo de afegãos? Viver na cave de onde escrevo até ao fim dos meus dias?”

Está tudo planeado - mas Matiullah sabe que não é possível planear para o sucesso de uma travessia de vários dias, de Turquia a Itália com paragem na Grécia. “Por estes dias tenho de ver se ligo à minha mãe a pedir a bênção, a pedir que reze, mas já sei que ela me vai dizer que fique aqui quieto na Turquia, onde estou ilegal, onde todas as noites acordo a suar porque sonho que me vieram buscar e me vão deportar.”

A odisseia de Matiullah começou em 2015, no Afeganistão, quando aos 18 anos decidiu dar aulas de inglês em Jalalabad, na província de Nangarhar, no leste do país. As aulas eram rápidas, algumas clandestinas, para que tanto raparigas como rapazes pudessem aprender. “A minha família começou a receber cartas com ameaças de morte dos talibã, a dizer que eu tinha de me juntar ao exército deles e parar de ensinar heresias às crianças. Matam mulheres, crianças, tudo, mas o problema é ensinar inglês, estás a entender?”, continua Matiullah numa das várias conversas que manteve com o Expresso a partir da Turquia ao longo dos últimos meses de verão.

Quando o pai morreu num atentado terrorista nesse mesmo ano, Matiullah não pensou que fosse por causa das suas aulas de inglês, porque não foi, morreram centenas de pessoas, mas custou-lhe mais continuar sem o apoio do pai, um “autodidata de tudo”. Matiullah escreve e fala inglês com uma correção de quem estudou a língua. Não usa os atalhos, as conjugações erradas ou as abreviaturas dos utilitários. Não é para desenrascar, é para ser professor. Pede livros, se os podemos enviar para casa de um amigo que já está legal. “Eu também podia estar legal mas cometi um erro enorme, agora olho para trás e vejo a estupidez que fiz”. Matti, diminutivo usado pelos voluntários europeus que não reconhecerem logo a fonética do seu nome pouco comum (Matiullah: humilde, submisso, obediente), não sabia as consequências que este ato de sobrevivência lhe viria a trazer.

A guerra é má, não poder escolher o amor é pior

A erva está seca e o solo é duro e certo debaixo dos pés. À frente de Lisa, o mar Egeu não é nada disso mas é por lá que se há de construir um futuro para ela, síria cristã de 40 anos, e para o seu marido sunita, também de 40 anos, que a família quer matar por ter fugido com Lisa. “Da guerra sim, também fugimos da guerra porque éramos de Alepo e toda a gente sabe que não se podia ficar lá, nem água havia, nem forma de alimentar as crianças, mas fugimos principalmente porque não há lugar na Síria onde uma cristã e um sunita possam viver em paz”, diz ao Expresso através do Whatsapp, por onde foi comunicando ao longo dos últimos dois meses. Agora o casal vive em Istambul, na Turquia, mas Lisa costumava caminhar pela cidade portuária de Esmirna, no oeste da Turquia, até um ponto onde pudesse olhar o mar.

Tentar entrar na Europa foi durante muito tempo uma obsessão de ambos. “A primeira vez que tentámos passar foi em dezembro de 2015, pouco depois de fugirmos da Síria e da família dele, que queria o seu sangue derramado para salvar o bom nome. Até aqui na Turquia nos procuraram, mudámos de casa e de telefone dezenas de vezes num ano.” Partiram de Edirne, na fronteira entre a Grécia e Turquia, com o rio Evros pelo meio, e chegaram à Grécia, à província de Orestiada. Pediram asilo mas a polícia prendeu-os. “Em menos de 24 horas estávamos de regresso à Turquia.” A vida é dura e feita de secretismo e caridade para os mais de três milhões de sírios na Turquia. “Voltaram a tentar já este ano, a 1 de março. "Embarcamos em Esmirna, com a intenção de chegar a Samos, mas uns homens encapuçados, de preto e com os rostos totalmente tapados, destruíram-nos o motor do barco e começaram a rasgar a borracha com uma faca, pararam depois, acho que foi porque viram tantas crianças a bordo. Deixaram-nos à deriva.”

Lisa conta que um deles apontou uma arma ao pescoço do homem que ia a conduzir o barco e obrigou-os a parar mas não sabe se são ou não autoridades oficiais, apenas desconfia porque entre os seus conhecimentos na Turquia estas histórias multiplicam-se e nem sempre os homens têm as caras tapadas ou as fardas dissimuladas. “Todo o barco estava em pânico. Começámos a afundar e ligámos à polícia marítima turca, que nos recolheu, mas avisou-nos que as pessoas que são presas várias vezes a tentar passar correm o risco de serem reenviadas para a Síria - eu não posso voltar, antes de poder chegar a minha casa teria de passar por zonas sob controlo dos selvagens extremistas.”

Uma tática recorrente

Durante umas duas semanas, Matiullah deixou de responder mas é ele que volta a escrever para contar o resto da história. Diz que se quis isolar um pouco da vida que tem tido: “Já passou algum tempo mas continuo a ter sequelas psicológicas por causa da violência, depressão, insónia, stress, pesadelos, parece que começo a lembrar-me de tudo, do que me fizeram e que me vão voltar a bater e o quanto dói”.

Lisa e Matiullah são apenas dois dos milhares de casos de reenvios forçados de migrantes documentados desde o início da crise migratória, um fenómeno que se acentuou nos últimos dois anos. Matiullah foi espancado, roubado e insultado pela sua origem por todas as polícias que encontrou nas 15 vezes em que foi devolvido. Tudo o que o olho esquerdo vê vai ficar para sempre nublado.

O fenómeno é conhecido como pushabacks, um muito literal “empurrar de volta”, na literatura sobre o tema. É na Grécia e na Croácia que a maioria dos casos se concentra, são essas as fronteiras externas mais expostas aos fluxos migratórios com origem principalmente no Médio Oriente do Norte de África; um pouco mais para ocidente, porém, no Mediterrâneo Central, o cenário é igualmente preocupante com milhares de pessoas empurradas de regresso à Líbia, um país que um diplomata alemão no Níger descreveu, em 2017, numa carta para a chanceler Angela Merkel, assim: “É um campo de concentração”.

A organização não-governamental Border Violence Monitoring Network (BVMN) mantém, online, com atualizações semanais, a maior base de dados da Europa sobre estas expulsões. Dos relatos que recolheu, a BMVN conseguiu provar a devolução de 9231 pessoas entre 1 de janeiro de 2017 e 1 de setembro de 2020. A esmagadora maioria é enviada da Croácia (70%) para a Bósnia (53%). A Eslovénia responde por 16% dos reenvios e a Hungria por 8%. Logo depois da Bósnia, a Sérvia é o destino que mais recebe pessoas devolvidas (34%), seguido da Cróacia (8%, todos reenviados da Eslovénia e que depois a Croácia envia para fora da UE - para a Sérvia ou a Bósnia).

O total de casos não é possível conhecer. É uma prática que se quer secreta, tanto para quem tenta entrar como para quem tenta impedir as entradas. Uma investigação da “Der Spiegel”, com base em documentos internos do governo turco, mostra que em três anos mais de 60 mil pessoas tenham sido enviadas de volta da Grécia à Turquia, muitas deles já depois de terem desembarcado em solo europeu, muitos delas já depois de terem conseguido os seus cartões brancos que legalizam a permanência. A Frontex alega que é propaganda turca. Apenas desde março, escreveu recentemente o “New York Times”, 1072 pessoas foram reenviadas. Segundo números do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, o número de pessoas devolvidas à Líbia aumentou de 3.686 nos primeiros seis meses de 2019 para 5.426 de janeiro a junho de 2020.

Ao fim de um tempo, os relatos da base de dados confundem-se, como se já tivéssemos passado por aquela página; os métodos de deteção, as palavras de humilhação, o roubo de bens pessoais, as sessões de violência com bastões e botas de biqueira de aço, as máscaras de ski que as autoridades usam para proteger a identidade, tudo isto aparece repetido nos relatórios. “Há um número muito significativo de pontos comuns entre os reenvios, tanto na rota dos balcãs como na Grécia, o que torna muito claro que estes métodos estão institucionalizados, não é uma coisa que aconteça apenas num posto fronteiriço ou por culpa de um ou dois polícias mais violentos.

Há diferenças, por exemplo, ao nível de violência, que é menos utilizada pela polícia eslovena do que pela croata, mas em quase tudo o resto há paralelismos”, começa por dizer ao Expresso Simon Campbell, fundador e coordenador da base de dados da BVMN. “Vários tipos de polícias, muitos com cara tapada, que transportam os migrantes em carrinhas sem janelas e conduzem até as pessoas vomitarem e lhes batem antes de as empurraram para fora da UE entre postos oficiais de passagem e não na fronteira oficial, muitas vezes através de rios. O roubo ou destruição dos telefones é particularmente pernicioso: as pessoas ficam perdidas sem GPS, não podem procurar uma loja, um hospital, é-lhes negada a partilha, a denúncia, a interação com a família. Além disso é uma destruição de provas”, acrescenta.

As estatísticas coligidas a partir dos relatórios mostram que apenas 1 em cada 10 migrantes diz ter sido reenviado sem recurso a violência física. Cerca de 70,4% das pessoas foram sujeitas a espancamentos - e, dessas, 38,8% relatam pontapés, 5,3% choques eléctricos, 5% ataques de cães e 55% tiveram parte ou a totalidade dos seus bens apreendidos pelas autoridades (quase 100% garantem ter entregue dinheiro, aquele que não conseguiram esconder, às autoridades).

Alguns membros da própria polícia croata confirmaram, sob anonimato, ao canal de televisão croata DNEVNIK, que estes comportamento estão previsto em diretrizes que vêm de cima. É um fenómeno assumido pela Comissão Europeia, que diz ao Expresso levar “muito a sério as alegações de pushbacks e de violência” nas fronteiras, não tendo porém “autoridade para investigar” o que se passa, cabendo essa responsabilidade “às administrações de cada Estado-membro”.

Os fundos para a polícia croata continuam a fluir: fim de 2018, a Comissão Europeia anunciou um apoio de €6,8 milhões para "fortalecer a vigilância das fronteiras e a capacidade de aplicação da lei", incluindo um "mecanismo de monitorização" para garantir que as medidas nas fronteiras são "proporcionais e em total conformidade com os direitos fundamentais e as leis de asilo da UE. ”

Também o Ministério dos Negócios Estrangeiros português está consciente do problema. O ministro da pasta, Augusto Santos Silva, garante ao Expresso que durante os seis meses em que Portugal vai ocupar a presidência da UE o tema das devoluções vai fazer parte das prioridades da agenda. “Portugal prestará especial atenção a situações de repatriamento ou devolução de migrantes que possam conflituar com os seus direitos fundamentais e com os princípios do Direito Internacional, com o objetivo de procurar contribuir para a sua cessação”, diz o ministro numa resposta por email. O Expresso também tentou saber as medidas específicas que o Governo português pensa pôr em prática para atingir esse objetivo mas até agora ainda não obteve uma resposta.

A informação contida nos relatórios obedece a critérios de fact checking rigorosos. Cada voluntário registado com a BVMN tem de escrever no relatório coisas como o tempo e a distância que cada migrante diz que percorreu, depois calcula se o rácio faz sentido, verifica o sítio onde a polícia os encontrou e se é um local onde a polícia costuma estar e tenta entrevistar o máximo de pessoas possível de cada um dos grupos devolvidos, sempre separadamente, para ver se as histórias do grupo são coincidentes. Especialistas e técnicos de informática analisam depois os dados de geolocalização dos telefones que sobreviveram à viagem, e é perguntado aos migrantes as referências visuais da viagem, para se conseguir provar se o entrevistado de facto entrou nos países que mencionou, além de também serem fotografados os ferimentos e, por vezes, em anexo, aparecem também relatórios dos hospitais.

Reenviado em cadeia

Em abril de 2018, depois de três tentativas, Matiullah consegue finalmente atravessar o rio Evros. Está de pé, cansado mas de pé, está deste lado, a Europa. Durante seis meses trabalha como tradutor no centro de detenção de Fylakio, perto de Orestiada, uma cidade grega na fronteira com a Turquia - sabe farsi, dari e pashtun, além do inglês. Quando a organização que o contratou cessa os serviços por falta de fundos, Matiullah é reenviado para o campo de Diavata em Salónica, onde primeiramente foi colocado pelas autoridades. Começa a pensar em todo o tempo que o seu processo de asilo ainda poderia demorar.

Em novembro de 2019, Matiullah decide dar os primeiros passos de uma vida que existe apenas na sua cabeça - dentro dela, ele chega a Itália e começa a ensinar inglês, dentro dela ele começa a enviar dinheiro para os estudos do irmão mais novo, dentro dela tudo acontece sob o manto protetor das noites escuras e silenciosas, sem drones, câmaras de infravermelhos que detetam temperatura corporal ou óculos com visão noturna. “Se eu soubesse o que me ia acontecer nunca teria tentado, nunca. Cheguei à Sérvia e não consegui subir mais. Fui espancado, tal como os meus amigos, quando acordei estava na prisão. Foram quatro meses sempre a tentar, 15 vezes no total, em todo o lado violência, em todas as fronteiras. Fui deportado para a Macedónia do Norte e aí obrigaram-me a apanhar um comboio ilegalmente, para a Grécia. Estas memórias desfazem-me o espírito, não sei como explicar, como se o meu corpo, por fora e por dentro, conseguisse lembrar-se de toda a dor”. Quando chega com os amigos à Grécia, em março de 2020, Matiullah é devolvido à Turquia, o início de tudo.

Fica três dias num descampado perto de Edirne, depois é empurrado de novo para a Grécia por forças turcas. “Bateram-nos violentamente e puseram-nos num barco de regresso à Grécia, o exército turco estava a comandar tudo.” O processo repetiu-se duas vezes. A violência está dos dois lados das margens, dormente ou a hibernar, à espera. À medida que os barcos avançam, o medo toma a forma de uma linha de silhueta que une homem e bastão.

Da segunda vez que foram reenviados pelos turcos para a Grécia, a polícia grega viu-os mas já não fez nada, deixou-os lá e foi-se embora. Matiullah e um amigo, em vez de furgirem, correm atrás da polícia e pedem ajuda. “A sério, já fomos chutados de um lado para o outro tantas vezes, não sabemos o que fazer.” Nesse mesmo momento são presos e no dia a seguir reenviados para a Turquia. “Não quis tentar mais. Pus-me a caminhar sempre em frente. Acho que devo ter caminhado uns 50 quilómetros. Deixaram-me telefonar de um café e um táxi levou-me para Istambul, onde um amigo pagou a despesa.”

No dia 6 de julho deste ano, a comissária europeia para os Assuntos Internos, Ylva Johansson, confirmou que sabia da existência destas práticas - e do envolvimento de várias polícias europeias neles. “Hoje esta reunião é sobre a Grécia mas não se trata apenas da Grécia - é sobre todas as nossas fronteiras externas. Recebo com frequência relatos de violações de direitos de mais do que uma fronteira externa. São incidentes que precisam de ser investigados”, disse numa intervenção no Comité para as Liberdades Civis, Justiça e Assuntos Internos.

A Guarda Costeira da Grécia já foi confrontada por vários meios de comunicação social, incluindo pelo Expresso, com esta conduta, mas nunca admitiu envolvimento ou sequer que estes reenvios estão a acontecer. “No caso do Egeu, em vez de transportarem as pessoas numa carrinha a alta velocidade para outra fronteira, os gregos arrastam os barcos até águas turcas ou destroem os motores com facas. É um padrão na mesma”, diz Campbell, relatos secundados por vários membros de outras organizações presentes perto dos locais onde pushbacks são mais frequentes, com quem o Expresso falou.

“É o própria figura do asilo que está em risco”

Itamar Mann, advogado israelita na área dos direitos dos refugiados, está neste momento a ultimar um caso contra a Grécia pela forma como “reiteradamente tem negado a entrada a milhares de pessoas, em muitos casos de forma violenta e humilhante, e a possibilidade de pedirem asilo”. Mann tem um texto de investigação na área do direito internacional sobre este tema e chamou-lhe “Crimes Banais contra a Humanidade”. Banais? “Um caso é um escândalo, uma comoção geral, vários casos é um sistema”.

Se as coisas continuarem assim o que está em risco é a própria instituição do asilo, uma possibilidade que tantos países se orgulham de honrar pelo menos desde o fim da Segunda Guerra Mundial: “As pessoas que atravessem uma fronteira e estejam em risco de perseguição pela sua cor, credo, posições políticas, orientação sexual, têm direito de pedir asilo num país onde a Convenção do Estatuto do Refugiado de 1951 esteja em vigor. Se vamos assumir que impedir que vidas se percam no mar justifica o garrote ao movimento de pessoas, então estamos a pôr em risco essa possibilidade fundamental, essa exigência legal que sustenta o Estatuto”.

O que diz a Marinha portuguesa e a reação da Frontex

Dia 3 de junho de 2020, Jean Moller, chefe de equipa de uma embarcação dinamarquesa que integra a Poseidon (missão marítima de patrulha das fronteiras, salvamento e registo de migrantes no Mar Egeu coordenada pela polícia europeia de proteção de fronteiras, a Frontex), disse à televisão estatal do seu país que o próprio comando da Frontex lhe tinha dado indicações para colocar de novo num bote de borracha os migrantes que havia salvado há minutos e gerou-se a suspeita de que a própria Frontex estivesse a começar a participar nestas estratégias ilegais de redução dos números de imigração.

A Polícia Marítima Portuguesa está há sete anos presente nestas águas que a natureza fez nascer calmas e as decisões dos homens tornaram revoltas. Como uma ponte antiga que volta a ver passar os carros para um hipermercado moderno construído fora da aldeia, assim o Egeu não se via agitado provavelmente desde a última grande guerra. Portugal tem missões na ilha de Lesbos desde 2014, estão estabelecidas no norte, em Molivos, e igualmente integradas na missão Poseidon, que, no total, tem mais de 600 agentes.

Pedro Jardim, chefe da equipa que neste momento está na Grécia, garante ao Expresso que nunca presenciou, nem nenhum outro membro da sua equipa lhe reportou, um caso de reenvio ilegal de pessoas. “Se o visse, seria obrigado a apresentar um relatório de violação dos direitos humanos pelos meios oficiais e as nossas equipas não devolveriam ao mar pessoas já resgatadas. Há um código de atuação e missão que o proíbe e esse também é o código da Frontex”, diz numa videochamada a partir da Grécia, durante a qual o Expresso se encontrava na sede da Marinha, em Lisboa.

O Expresso confrontou a Frontex quer com a história do navio dinamarquês quer com outras informações retiradas da base de dados da BVMN que acima referimos, onde vários relatórios mencionam a presença de polícias com a braçadeira azul-clara com a bandeira da UE própria das fardas dos agentes Frontex no momento em que as pessoas são reenviadas. Apesar de não haver relatos de violência direta por parte destes agentes, a sua presença na supervisão dos atos de outras polícias aparece várias vezes referida. Em relação ao caso do navio dinamarquês, a Frontex explica que a ordem de colocar de novo as pessoas no barco de onde tinha sido resgatados foi dada pela Guarda Costeira grega e não pela Frontex e que o incidente foi corrigido e os migrantes salvos. Em relação a tudo o resto: “A Frontex nega totalmente quaisquer insinuações sobre o envolvimento dos seus agentes em qualquer pushback, até porque são ilegais à luz da lei internacional”, escreveu num email o porta-voz da polícia, Chris Borowski.

Os números disponibilizados pela própria agência, em comunicado, mostram que as chegadas à Grécia, nos primeiros seis meses de 2020, caíram para metade em comparação com 2019 (11.900 até ao fim de junho). A queda é tão acentuada que, segundo a mesma agência, se prevê que o número de entradas, por terra ou mar, no fim do ano, fique próximo de números de há mais de uma década, em 2009. Oficialmente, nenhuma das autoridades presentes no Egeu, polícia marítima portuguesa incluída, admite qualquer ligação entre as devoluções e a redução de chegadas. Pedro Jardim considera que a prevalência do novo coronavírus e a falta de condições de vida nos campos de refugiados têm dissuadido os migrantes.

Poucos dias antes da publicação deste artigo, Matiullah chegou a Itália num desses cargueiros que tanto procurou. “Puseram os homens solteiros perto do motor, tudo gorduroso e sujo, o calor era pior que no inferno, não havia luz. Eu zonzo, sem espaço para me sentar, deitar, dormir, o barulho do motor insuportável, ainda está nos meus ouvidos. São mais algumas imagens para meus pesadelos, mas dou todas as graças a todos os deuses pela Guarda Costeira de Itália.”

O cargueiro que partiu de Alexandroupoli, na Grécia, com destino a Bari, no sudeste de Itália, parou a 170 quilómetros da costa e seguiu viagem até ao destino final sem os migrantes dentro. Toda a gente foi obrigada a saltar para um barco de borracha onde teriam de fazer o resto da viagem mas uma hora depois já estavam a afundar. Foram a votos: “Sim, temos de ligar aos italianos mesmo que nos devolvam à Grécia porque nos vamos afundar”, lembra-se Matiullah de ouvir todo o barco concordar. “Lembro-me de há muito tempo, em Salónica, ter tido uma professora de inglês portuguesa, ela falava-nos às vezes do país, é superseguro, não é? Pareceu-me sempre um sítio daqueles para chegar e ficar. É assim?”

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