Internacional

O regresso dos reprimidos é sinónimo de revolução?

Estudantes iranianos protestam contra o abate do avião ucraniano junto à Universidade de Teerão, capital do país.
Estudantes iranianos protestam contra o abate do avião ucraniano junto à Universidade de Teerão, capital do país.
ATTA KENARE/GETTY IMAGES

Pediu-se a demissão dos “assassinos” e dos “mentirosos” nas ruas do Irão depois do abate do avião ucraniano mas vários iranianos ouvidos pelo Expresso duvidam que isso aconteça. “Só uma criança acreditaria que o governo pudesse demitir-se.” Não é certo se os protestos se vão manter e culminar na “revolução” que há quem sugira entredentes, ou pelo contrário acalmar, mas o que é certo é que “o Governo perdeu totalmente a confiança das pessoas”. E que consequências é que isso terá mesmo?

O regresso dos reprimidos é sinónimo de revolução?

Helena Bento

Jornalista

A questão que mais se coloca neste momento quando se olha para o que tem acontecido nas ruas do Irão, com protestos muito suados por causa do abate do avião ucraniano com 176 pessoas a bordo, na sua maioria iranianas, é saber aquilo que se lhes segue, se uma espécie de revolução ou se a acalmia por desilusão e cansaço dos que neles têm participado, se por repressão do regime. As dúvidas são tantas que houve até quem sugerisse que talvez estejamos a assistir à versão iraniana do desastre nuclear de Chernobyl, de 1986, que expôs um sem fim de falhas e decisões irresponsáveis e prepotentes que não se quis que ficassem por condenar, tal como, argumentam os que fazem tal comparação, está a acontecer agora no Irão.

O regime iraniano não só começou por jurar por tudo que o avião tinha caído por causa de “problemas mecânicos”, por que outra razão poderia ter caído?, como insistiu na tese durante vários dias mesmo depois de saber que tinham sido os seus mísseis a atingi-lo. Chernobyl e outras suposições à parte, para quem vive no país, e Mahboobeh Davoodifar, de 30 anos, vive, tudo é menos especulativo e também, no sentido estrito da palavra, menos espetacular. “Os protestos mostraram que há uma grave problema no país mas, infelizmente, creio que tudo isto é temporário. Passámos exatamente pelo mesmo em novembro”, diz em entrevista ao Expresso, referindo-se aos protestos contra o aumento de pelo menos 50% do preço da gasolina que levaram milhares às ruas em novembro do ano passado e resultaram na morte de um número indefinido de pessoas (a Reuters, citando mais do que uma fonte do Ministério do Interior iraniano, falou em 1500 iranianos mortos, incluindo cerca de 400 mulheres e 17 jovens, os EUA em mais de mil e a Amnistia em pelo menos 304) e outros tantos feridos e outras consequências que não foram exatamente conhecidas porque o regime cortou o acesso à Internet no país. Nessa altura, continua a jovem iraniana, que trabalha na Universidade de Ciências Médicas de Shiraz, “morreram muitos manifestantes só numa semana e depois a vida continuou como se ninguém tivesse morrido”. O “grande problema”, diz, é que o seu país é governado por pessoas “sem capacidades para os lugares que ocupam”.

O ayatollah Ali Khamenei, líder supremo do Irão
Scott Peterson/Getty Images

Nos últimos dias, entre o burburinho típico de protestos têm-se ouvido autênticas ordem de despejo — os líderes iranianos devem demitir-se e que o primeiro a fazê-lo seja o líder supremo iraniano, o ayatollah Ali Khamenei, “porque é um assassino e o regime que governa está obsoleto”. Isso se ouviu nos protestos de sábado, dia em que o regime fez um mea culpa do sucedido, e ouviu-se também “mortos aos mentirosos” e aos “inimigos que vivem entre nós”. Será? E se demissão for pedir muito, ou pedir o que não deve ser pedido, que será do regime depois disto? Mahboobeh Davoodifar mal reage. “Só uma criança acreditaria que o governo pudesse demitir-se. Nunca o fará. Nunca mesmo. Eles até se gabam por terem sido supostamente honestos e admitido o erro. Divulgaram, aliás, informação falsa nas redes sociais sobre países que demoraram dez dias a admitir que tinham sido responsáveis pela queda de determinados aviões. Para eles, é um grande feito terem admitido isso em apenas três dias.” Já para não dizer que admitir o erro e “pedir desculpa não é suficiente porque isso não traz os mortos de volta à vida”.

Mahboobeh Davoodifar diz ter ficado “desapontada” quando soube que o governo do seu país tinha sido responsável pela queda do avião, mas desapontamento também não é sentimento novo para si. “Nem sequer me apetece participar nos protestos, é inútil. Estamos a viver um pesadelo do qual nem sequer conseguimos acordar”. E à sua volta o que vê é sobretudo “preocupação”. “As pessoas estão preocupadas e, depois do que aconteceu no último ano, muitas delas nem sequer querem ouvir falar de guerra ou de política. Estão mesmo exaustas.” A jovem iraniana fala de “pobreza” e da desvalorização da moeda iraniana, o rial, e não fala mas também podia fazê-lo, por estar relacionado, das sanções impostas pelos EUA para obrigar o país a regressar à mesa onde se discute o acordo nuclear, sobretudo as que visam as maiores empresas petrolíferas, que têm asfixiado a economia do Irão. “No outro dia estava a dizer a uns amigos que tenho medo de adormecer. Porque quando acordo de manhã há sempre uma nova tragédia” — ou “é o aumento do preço do petróleo” ou “as 1500 pessoas que morreram nos protestos em novembro” ou “a morte do general Soleimani e as consequências que isso nos trouxe por causa deste desejo de vingança” ou “as 60 pessoas que morreram no seu funeral” e “as 19 que morreram num acidente de autocarro no norte do país” ou “a queda do avião que pode ter sido causada pelo regime que pode ter sido intencional”.

Mahboobeh Davoodifar tem de 30 anos e trabalha na Universidade de Ciências Médicas de Shiraz, no sudoeste do Irão
Fotografia cedida ao Expresso

Além dos protestos nas ruas, várias pessoas conhecidas no Irão, da área do cinema mas também do desporto, assumiram uma posição. A atriz Taraneh Alidoosti criticou o governo numa publicação no Instagram acusando-o de fazer dos iranianos “reféns” (“não somos cidadãos, somos reféns, milhões deles”, escreveu). E uma antiga jornalista da televisão estatal IRIB, Gelare Jabbari, pediu desculpa por “ter mentido ao público durante 13 anos”. “É muito difícil para mim acreditar que os meus compatriotas assassinaram pessoas”, disse também. Também sobre isso Mahboobeh Davoodifar tem algo a dizer: diz que sempre se sentiu assim, mesmo “enquanto criança”. “Sempre achei que todas as raparigas do mundo iam para a escola com vestidos longos e véus sobre o cabelo. Foi só mais velha que percebi, que abri os olhos, e comecei a sentir-me também dessa forma, como se estivesse presa no meu país.”

O regresso dos reprimidos

Outro iraniano com quem falámos, de 30 anos — o nome foi ocultado a pedido do próprio, e “chama-me paranóico se quiseres mas por favor não uses o meu nome porque aqui nunca se sabe” — diz não saber se estes protestos são diferentes dos anteriores mas que todos eles “constituem o ‘regresso dos reprimido’”, aludindo ao conceito psicanalítico. “A frustração é tanta que, independentemente do motivo, pode ser uma fraude nas eleições ou o aumento do preço do petróleo, os protestos acabam sempre com um grito de revolta contra a legitimidade do regime.” Se os que começaram há dias vão continuar “não sabe, é difícil prevê-lo”, mas a verdade é que têm acontecido “com alguma regularidade nos últimos anos”. E, “em geral”, condena-os, não tanto por achar que são inúteis, mas porque “acabam por atrasar a implementação de determinadas políticas” e assim se “mantém a hegemonia do governo”. Por outro lado, e sendo um “pessimista” (e é a segunda vez que o refere durante a conversa com o Expresso), o que queria mesmo era que as “pessoas ficassem em casa para evitar serem mortas ou detidas como sempre acontece depois das manifestações”. “Não sei se a situação vai melhorar ou, pelo contrário, piorar, porque este governo é sempre bastante imprevisível.”

Protestos na capital do Irão, Teerão, em novembro de 2019. Houve muitas vítimas mortais e milhares de feridos
ATTA KENARE/GETTY IMAGES

Novembro também lhe está na cabeça, foi duro, cristalizou na memória (esses protestos foram, aliás, considerados os mais mortíferos desde a Revolução Islâmica, há 40 anos), vai ser um problema esquecer. “Ninguém achou que o governo fosse capaz de matar tantas pessoas, mas foi”, e matou. “E daqui para a frente só consigo antecipar tempos muitos negros e ainda mais ditadura, mesmo em tempos de paz.” Demissões são “improváveis”, bastante, “ainda que o governo possa fazer algo para atrair a atenção das pessoas”, para mostrar que de facto se preocupa e cuida e lamenta para lá das palavras de lamento (pediram desculpa pelo “erro desastroso” o Presidente do país, Hassan Rouhani, e o ministro dos Negócios Estrangeiros, Mohammad Javad Zarif). Ainda para mais com eleições presidenciais à porta (estão marcadas para 2021), diz o jovem iraniano, que disto tem a certeza: “O governo perdeu totalmente a confiança das pessoas”.

“Todos nós percebemos que o regime, se quiser, pode mentir-nos muito facilmente”

Outro iraniano com quem falámos tem acompanhado os protestos à distância, vive noutro país, mas pede para não ser identificado porque nenhuma distância é suficientemente confortável. Até podia estar noutro planeta. “Se soubessem que falei, jamais me deixariam voltar ao Irão”. Diz estar em contacto com amigos no país, com quem fala “sobretudo pelo Instagram, a única rede social que não está bloqueada”, e neles perceber “reações muito intensas, como nunca antes, não apenas por causa da queda do avião mas por causa do poder excessivo, o poder máximo, que consideram que a Guarda Revolucionária tem no Irão”. “Acusam-na de ser responsável pela pobreza no país e símbolo da ideologia anti-EUA. E é por isso que acham que o abate do avião não foi um simples erro.”

Negá-lo e insistir na teoria de falha técnica” só tornou “tudo ainda mais grave”, diz. “Agora temos a certeza de que eles podem mentir-nos muito facilmente se quiserem. E por isso ninguém acredita em reformas que possam melhorar o que quer que seja”. Acredita-se, sim, “numa reforma profunda na Constituição do país ou até numa revolução”, sim, numa revolução, “porque é nesse ponto radical que as pessoas estão agora”.

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