Internacional

“O mundo não vai reverter para a época em que a Inglaterra era especial”: as lições da esmagadora vitória de Boris

13 dezembro 2019 5:19

Ana França

Ana França

Jornalista da secção Internacional

oli scarff / getty

Os conservadores venceram esta quinta-feira as eleições gerais no Reino Unido, tendo conseguido retirar lugares aos trabalhistas mesmo em locais considerados seguros. Boris Johnson regressa a Downing Street com a maioria reforçada que Theresa May quis mas não conseguiu e fica mais difícil para os defensores da UE dizer que o país não quer o Brexit. O Reino Unido ainda tem de entender o seu futuro como parceiro do bloco europeu e resta também saber o que fará a Escócia. Entretanto, Corbyn já disse que não vai concorrer mais a eleições gerais

13 dezembro 2019 5:19

Ana França

Ana França

Jornalista da secção Internacional

Sophia Bergqvist votou por correio a 6 de dezembro em Londres porque sabia que no dia das eleições estaria em Portugal e “é fundamental votar”, desde logo por “ser mulher e saber que as mulheres tiveram de lutar para ter direito ao voto”, mas também “pelo atual momento que se vive em Inglaterra”. Aos 59 anos, vive entre Londres e o Pinhão (para dar continuidade ao legado da avó Clara na vinha Quinta de La Rosa) decidida a “continuar a ser europeia”. Tudo se tornou mais difícil com esta vitória esmagadora de Boris Johnson, que defende a saída do Reino Unido da União Europeia e agora tem muito mais margem para aprovar o acordo que não conseguiu aprovar na legislatura anterior.

É impossível saber exatamente o que levou tanta gente a escolher com tanta clareza o projeto conservador. A primeira resposta, a mais óbvia, é o fenómeno chamado “Brexit fatigue” - mesmo as pessoas que votaram ‘remain’ estão cansadas do manto gelado que o tema impôs aos movimentos normais de uma legislatura. "Sou contra o Brexit, mas também tenho preocupações com o antissemitismo dos trabalhistas e sabia que uma terceira opção nunca seria vencedora, por isso foi difícil escolher e senti-me triste quando votei", comenta Bergqvist. Sophia quer agora ver o futuro definir-se, mesmo que esse futuro seja o Brexit. "Na minha família, felizmente, estamos todos unidos contra o Brexit, mas sei que temos as famílias divididas, o parlamento dividido, o país dividido, por isso, mais do que tudo, o que peço neste momento é uma decisão, seja em que sentido for. O pior de tudo é a indecisão, a indefinição. É o estar à espera sem saber como vai ser."

Já Martin Harris, dentista do SNS de 46 anos, deu o seu voto aos conservadores, mesmo sendo europeísta porque “nem tudo é sobre o Brexit”. Harris considera Corbyn “tão exageradamente esquerdista que não vai conseguir fazer nada do que prometeu e, se fizer, a economia acaba destruída”. É mais um ‘remainer’ cansado de tudo. “Eu votei para ficarmos mas não se fala de mais nada, não acontece mais nada no país. Até podemos ficar pior de início mas depois estabiliza”, diz ao Expresso através de uma conversa pelo Whatsapp.

“As escolhas diante de nós são tão estranhas”

Quantas razões se conjugaram para este resultado? “As pessoas não acreditaram que o Corbyn fosse capaz de fazer o que prometia e a mensagem dos ‘tories’, ‘Get Brexit Done’, foi extremamente bem pensada porque não diz nada sobre a parte complicada que é de facto fazer um acordo comercial”, diz ao Expresso Simon Usherwood, especialista em Assuntos Europeus na Universidade de Surrey. O governo tornou-se conservador mas as pessoas não passaram a ser conservadoras no ano e meio que separa esta eleição daquela em que Theresa May perdeu a maioria. “Não considero que tenha havido uma gigantesca mudança de atitudes ou ideologia entre os britânicos e se o Boris fizer alguma coisa um pouco mais radical, será porque foi pressionado por certas alas do partido e não por ser um ideólogo nem porque vê uma mudança drástica na opinião pública. É preciso lembrar que nem toda a gente quer o mesmo tipo de Brexit”, acrescenta. O que parece certo é que Johnson vai poder seguir com o seu plano para a saída - e que vai acontecer a 31 de janeiro a menos que algo de muito imprevisível aconteça.

A maioria dos amigos de Diogo Vasconcelos, músico e produtor musical que desde os cinco anos vive no Reino Unido apesar de ter nascido em Portugal, votou para permanecer na UE e quer um segundo referendo. Ainda assim, “sentem-se privados de direitos e não há ninguém que os represente”, escreve Diogo ao Expresso, num email em inglês logo depois de votar. “Quase poderíamos dizer" - continua - "que estão a sentir na pele os tipos de sentimentos que fizeram metade do país votar para sair”. O problema de Diogo Vasconcelos é que tem dentro dele uma luta que o impede simplesmente de concordar com a revogação de uma coisa pela qual as pessoas votaram: “É um pouco como um advogado que sabe que o seu cliente provavelmente é culpado mas escolhe tapar o nariz e defendê-lo”.

“As escolhas diante de nós são tão estranhas”, diz - parece suspirar. O problema com o ‘labour’ é que promete tudo mas será que isso “sou eu apenas a ser vítima da propaganda da imprensa de direita?”, pergunta-nos interrogando-se a ele mesmo. E escolhe um exemplo do manifesto para ilustrar as impossibilidades. “Os trabalhistas querem plantar dois mil milhões de árvores até 2040 - isso significaria plantar três árvores a cada segundo, dia e noite. Isso significa 43200 árvores por dia e o mesmo à noite. O que diz isso sobre o restante de suas promessas?” Mas Boris Johnson também tem direito a uma metáfora. “Todos sabemos que ele só diz asneiras, com aquelas promessas de ‘reaver o controlo’ e ‘fazer o Brexit’. A exaustão vai levar a melhor, um pouco como uma esposa abusada que decide acreditar que o parceiro vai mudar, apenas para ter uma bocado de paz com ela mesma.”

Corbyn não fica para outra

Assim que os resultados começaram a chegar, e por serem de tal forma opressores para as esperanças do ‘Labour’, as redes sociais foram inundadas por críticas a Jeremy Corbyn mas também de comentários contra o Brexit, essa entidade sem corpo que os trabalhistas, num email interno difundido entre as cúpulas, mandavam que se culpasse publicamente pela catástrofe. Ian Murray, candidato ‘labour’ por Edinburgh South, culpa Corbyn e apenas Corbyn. No Twitter, escreveu a sua experiência no terreno de campanha: “Em todas as portas a que bati, e eu e minha equipa conversámos com 11.000 pessoas, o nome de Corbyn foi sempre mencionado. Não Brexit, mas Corbyn. Há anos que digo isto. O resultado é que dececionámos o país e precisamos de mudar de rumo rapidamente”. Outros trabalhistas foram menos abrasivos, mas todos pedem uma análise profunda ao resultado e ponderação no caminho a seguir. Um dos defensores de Corbyn foi Jon Lansman, fundador do movimento de esquerda Momentum, que optou por realçar aquilo que o líder dos trabalhista atingiu: “Corbyn, na minha opinião, conseguiu coisas muito importantes. Na questão da austeridade, mudou completamente a narrativa, mesmo antes de se tornar líder já tinha mudado a ideia universal de que não havia caminho algum além da austeridade - tanto que até os ‘tories’ abandonaram essa narrativa”. O líder trabalhista acabou por afirmar já de madrugada que não vai concorrer a mais nenhuma eleição geral.

Gareth Snell, que perdeu o seu lugar em Stoke-on-Trent Central, um círculo trabalhista desde que foi criado, em 1950, culpa os “remainers dentro do partido” que “só estavam a pensar na corrida à liderança e em vencer nos círculos eleitorais londrinos”. “Uma tóxica combinação de fatores levou a que eu ouvisse de tantos eleitores que o ‘Labour’ tentou parar o Brexit. Tenho de dizer que a questão do Jeremy Corbyn surgiu em algumas casas que visitei: algumas pessoas gostam muito dele, outras muito pouco. Foi um fator disruptivo, sem dúvida”, disse à BBC o candidato, acrescentando, contudo, que o grande tema que fraturou a grande parede vermelha foi o Brexit. “O partido tinha perante si uma escolha quando a Theresa May apresentou o acordo. Podíamos ter parado os ‘tories’ ou parado o Brexit e, infelizmente, as sirenes começaram a apitar no gabinete de ministros-sombra que têm grandes maiorias liberais-democratas nos seus assentos em Londres e decidiram apostar em parar o Brexit, desprezando os nossos eleitores nos círculos marginais do centro e norte.” O ‘Labour’ perdeu círculos que eram autênticas fortalezas vermelhas, entre o quais o de Tony Blair, Sedgefield, mas também outros blocos da chamada “red wall” vieram abaixo: Workington e Blyth Valley são dois exemplos dolorosos.

“Eventualmente a Inglaterra vai ser normal”

O historiador britânico Anthony Barnett, autor de vários livros sobre a História do Reino Unido, incluindo o último “The Lure of Greatness: o Reino Unido do Brexit e a América de Trump”, tem uma explicação para a tragédia que se abateu sobre o Partido Trabalhista: “A tragédia do ‘Labour’ é que nunca teve coragem para ir dizer às pessoas no norte, do centro, que as coisas não vão mudar de volta ao que eram, não foram falar com as pessoas, avisá-las de que o mundo não vai reverter para a época em que a Inglaterra era especial”. Ao telefone com o Expresso, o historiador começa por distinguir Inglaterra dos restantes países que integram o Reino Unido - porque é aí que reside o problema. Considera que, eventualmente, a “normalidade vai regressar” e que “vai haver um movimento pela readesão” do país à UE.

A explicação para este sentimento que se cristaliza agora em resultados bem visíveis pode estar muito mais enraizado do que aquilo que nos apercebemos apenas a olhar para os resultados destas e de outras eleições. “Toda a gente lutou contra os grandes ingleses, os russos, os alemães, os espanhóis, os indianos, os japoneses e nós fomos os primeiros grandes movimentadores, a casa da indústria, nunca precisámos de aspirar a nada e criou-se uma ilusão à volta do nosso excecionalismo.” O historiador utiliza muito a palavra “normalidade” como uma coisa boa, uma coisa que “os ingleses vão acabar por abraçar”. E o que é essa normalidade? “É ser-se europeu sem achar que isso diminui a nossa nacionalidade”, diz, perguntando-nos de volta se por sermos europeus nos sentimos menos portugueses. “Para os 80% de mulheres com menos de 34 anos que votaram ‘remain’, por exemplo, ser-se normal já é o seu quotidiano: viajam, conhecem outras capitais, estudam fora. Agora, para as pessoas que ainda se lembram da Guerra da Malvinas é mais complicado porque todas as suas memórias remontam a um tempo em que éramos diferentes.”

A culpa da divisão que hoje define a política britânica, diz Anthony, é culpa de homens como David Cameron, Tony Blair e John Major, “que sempre falaram da UE como um pacto de comércio, nunca disseram às pessoas que estar na UE era passarmos a ser normais, que nos estávamos a tornar normais como o resto dos europeus, com liberdade de movimento, uma Declaração de Direitos Humanos, um Tribunal Europeu, regras para concursos públicos”.

“As lideranças políticas nunca disseram ‘estamos a mudar’, disseram sempre ‘somos diferentes’. Nunca contaram ao país que nos estávamos a tornar europeus, então foi fácil culpar essa entidade estranha que não tem direito nenhum de aqui estar a exercer poder. A grande mudança interior, de mentalidade, nunca foi incutida nas pessoas”, prossegue o historiador. Mas a coisa boa do tempo é que passa, aponta Anthony, que acredita acima de tudo na força da normalização da mentalidade do seu povo. “Temos o maior movimento europeísta da UE, é uma fera sem domador mas a sua força vai ser útil para conseguirmos reverter o ‘Brexit’.” “Este resultado apenas vai servir para que a Escócia acelere a saída e se junte à UE e isso vai voltar a mudar Inglaterra, vai diminuir e, mais uma vez, mais pessoas vão aperceber-se de que vivem num país normal.”

O ‘Labour’ e as elites liberais também têm culpa porque “nunca querem discutir as causas que nos trouxeram até aqui”. É uma “crise patológica do pensamento, uma espécie de experiência extrema de luto - ressentimento e negação”. O historiador diz ao Expresso que já falou com muitos políticos e ex-políticos sobre o Brexit “e eles não aceitam, dizem que foi por mentiras ou manipulação mas isto são desculpas, não aceitam que têm responsabilidade por nunca falar com as pessoas”. “O Corbyn, por exemplo, não entende que o Brexit não é sobre segurança económica - é e sempre foi sobre controlo, sobre democracia.” Quando as coisas começaram a correr mal nas zonas mais industrializadas, os políticos utilizaram a UE como forma de se desculparem pelos seus falhanços, pelo desinvestimento, disseram “não podemos fazer nada”. E aí as pessoas responderam “não nos digam que não estão ao comando, não nos digam que não têm poder nenhum, se não têm responsabilidade então nós vamos dar-vos essa responsabilidade de volta, façam alguma coisa”.