Internacional

Venezuela. Dois presidentes para um país exausto

23 janeiro 2019 23:45

Daniel Lozano, em Caracas

cristian hernandez/lusa

Pressões internacionais e o confronto com o governo conduziram Juan Guaidó à decisão que anunciou nesta quarta-feira e que eleva, ainda mais, a magnitude de um confronto inédito: o presidente “de facto” Nicolás Maduro contra o presidente “interino”

23 janeiro 2019 23:45

Daniel Lozano, em Caracas

A Venezuela vive momentos históricos. “Hoje, 23 de Janeiro de 2019, na minha condição de presidente da Assembleia Nacional, juro perante Deus todo poderoso, a Venezuela e os colegas deputados, assumir formalmente as competências do Executivo Nacional como presidente interino da Venezuela para conseguir eleições livres”, clamou Juan Guaidó, líder do poder legislativo, diante de uma imensa maré humana de cidadãos que tomaram a capital aos gritos de “Fora, Maduro!”.

O desafio contra o “filho de Chávez” fez-se sentir nos quatro cantos deste país petrolífero, numa demonstração de força com centenas e centenas de milhares de pessoas nas ruas e que foi em simultâneo a confirmação da aversão nacional ao atual regime. Uma frase e uma decisão do jovem político de 35 anos, discípulo do preso político Leopoldo López no partido Voluntad Popular, que abrem uma porta desconhecida no labirinto construído pela revolução bolivariana durante duas décadas de poder quase absoluto.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, foi o primeiro a reagir para reconhecer Guaidó como presidente interino, algo que o vice-presidente, Mike Pence, já havia adiantado nas suas conversações privadas com os representantes do novo Parlamento. Washington insistiu em que usará todo o seu poder económico e diplomático para “restaurar a democracia na Venezuela”. Entre outras, haverá sanções petrolíferas, que parecem iminentes.

“Reconhecimento” para Guaidó

Luis Almagro, secretário-geral da OEA e principal opositor do chavismo, adiantou “todo o nosso reconhecimento” para Guaidó, ao mesmo tempo que ordenava a suspensão do processo iniciado pelo governo bolivariano em 2017 para abandonar este organismo. O Parlamento nomeou na terça-feira um respeitado constitucionalista, Gustavo Tarre Briceño, como seu representante junto da OEA.

A decisão, pedida pela maioria dos governos da região, foi apoiada quase de imediato. O Canadá reconheceu Guaidó como “novo presidente da Venezuela”, tal como o fizeram depois a Colômbia, a Argentina, o Chile, o Paraguai, a Costa Rica, o Equador e o Perú.

A resposta revolucionária chegou ainda antes do juramento de Guaidó. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) advertiu que havia participado à Procuradoria-Geral as actuações dos parlamentares por “usurpação” das funções presidenciais. O STJ também instou a Assembleia Constituinte, órgão revolucionário que assumiu à força as funções do Parlamento, para que a Assembleia legítima seja declarada ilegal.

Um confronto inédito

As pressões internacionais e o confronto com o governo conduziram Guaidó à decisão que anunciou nesta quarta-feira, que eleva ainda mais a magnitude de um confronto inédito: o presidente “de facto” Nicolás Maduro contra o presidente “interino”. O primeiro com o apoio da revolução, da cúpula militar, das forças repressivas e dos serviços de inteligência, bem como dos seus aliados Cuba, Rússia e China. E o segundo, com o apoio popular e o da maioria dos países da região, além dos Estados Unidos e do Canadá.

No outro confronto, o das ruas, a goleada foi épica. Rios humanos avançaram em Caracas por leitos que haviam ficado secos desde os protestos de 2017. Abraham e Andrea vieram do duríssimo bairro popular do Cemitério com um cartaz colado nas costas dela: "Fora Maduro, liberdade!". “Desta vez não vamos render-nos”, disseram ambos.

A grande novidade desta recente vaga de protestos é que as classes mais populares dos bairros do oeste da capital se uniram ao clamor nacional. Em Catia, na noite de terça-feira, um jovem de apenas 16 anos morreu com um tiro disparado pelas forças governamentais. Uma centena de protestos tiveram início nos bairros mais populares de Caracas durante as 48 horas anteriores à concentração da oposição, após a sublevação de 27 guardas nacionais no quartel de Cotiza. Todos eles se renderam, mas já haviam incendiado o oeste da capital, outrora um bastião chavista.

Repressão e vítimas mortais

A repressão não cessou durante todo o dia, somando mais vítimas mortais, pelo menos dois jovens alvejados em Táchira. Em Bolívar, na fronteira com o Brasil, o derrube de uma estatua de Hugo Chávez precedeu uma vaga de pilhagens, com pelo menos mais uma vítima mortal.

Em contrapartida, a concentração chavista de Caracas decorreu sem qualquer obstáculo, animada pelas comidas e bebidas gratuitas distribuídas a torto e a direito. Uma convocatória reforçada com “anabolizantes”, à qual os funcionários públicos estavam obrigados a assistir e em que autocarros gratuitos transportavam os simpatizantes chavistas desde os ministérios e organismos públicos até aos locais escolhidos.