Cinco anos depois do encontro que juntou reitores e presidentes dos politécnicos em Salamanca, Espanha, três dezenas de representantes de instituições de ensino superior portuguesas voltaram a encontrar-se, desta vez na cidade de Valência, para debater o presente e o futuro do ensino superior. Entre 2018 e 2023 aconteceu uma pandemia, eclodiu uma guerra na Europa e assistem-se a desenvolvimentos tecnológicos de consequências difíceis de antecipar. E se o mundo como o conhecíamos mudou, também a Academia, mais do que nunca, sente que tem de adaptar-se. Há desafios novos, mas também problemas antigos por resolver, apontaram os dirigentes portugueses, num debate promovido terça-feira pelo Expresso, em parceria com o Santander e a rede Universia.
Um dos problemas persistentes prende-se com o financiamento ou a falta dele: “Precisávamos de uma injeção no sistema de 80 milhões a 100 milhões de euros, que é nada quando comparado com as ajudas que já foram dadas à TAP. No conjunto do Orçamento do Estado seria muito pouco; mas para nós [universidades] faria uma diferença imensa”, apontou o reitor da Universidade de Lisboa, Luís Ferreira.
A ministra admite que seria desejável mais e acrescentou até outro número com que Portugal se compara mal. Atualmente, o investimento (público e privado) em ciência e tecnologia representa 1,7% do PIB, a meta é chegar aos 3% em 2030, mas continua a ser pouco se se pensar que a Coreia do Sul, por exemplo, lhe dedica 5%, lembrou Elvira Fortunato.
A este problema junta-se o défice da participação de doutorados em empresas. Se na União Europeia 35% estão no sector empresarial, em Portugal esse valor ainda está aquém dos 10%. “Temos todos de perceber que é absolutamente decisivo alterar esta situação”, argumentou Emídio Gomes, reitor da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. “Urgente e necessário” é também apostar na interdisciplinaridade e “promover o diálogo entre pessoas e entidades que não falam necessariamente a mesma língua”, pois só assim se poderá dar resposta a problemas complexos, destacou, por seu turno, Joana Resende, vice-reitora da Universidade do Porto.
Da parte dos institutos politécnicos o alerta centrou-se na importância de manter a presença do ensino superior em diferentes regiões, não sucumbindo à concentração populacional no litoral do país. Como forma de reter e atrair população, mas também de promover o desenvolvimento económico dessas regiões, defendeu o presidente do Politécnico de Viseu, José Costa, rejeitando a ideia de fechar uma instituição numa determinada capital de distrito só porque conta com apenas dois mil alunos.
A ideia foi apoiada pelo presidente do Politécnico de Portalegre, que lançou a pergunta à plateia: “Se vos pedirem para indicar as melhores universidades dos EUA, não vão referir nenhuma das grandes [o instituto de tecnologia Caltech, na Califórnia, tem pouco mais de dois mil alunos e o MIT à volta de 11 mil)? O que determina a qualidade é o que se faz na instituição, e não a quantidade”, argumentou Luís Loures, reforçando: “O ensino superior também tem de se adaptar às necessidades do território.”
Necessidade de mudança
Nos vários painéis de debate, que decorreram na futurística Cidade das Artes e das Ciências, desenhada por Santiago Calatrava e Félix Candela, e que juntaram dirigentes do ensino superior de 14 países, foi também do futuro que se falou: do muito que as instituições precisam de fazer para se adaptar em termos de ensino e da sua organização, das potencialidades trazidas pelas novas tecnologias, como a inteligência artificial ou a realidade aumentada, e também dos riscos associados.
“Tenho de admitir que nem mesmo uma universidade como Oxford está neste momento preparada para dar a formação e as competências de que os alunos irão precisar. Não é só uma questão técnica, de sabermos usar ferramentas como a inteligência artificial, é pensar nas questões éticas que se levantam e como vamos trabalhar lado a lado com algo não humano. As instituições estão a olhar para isso, mas tudo se mantém como se estivéssemos no século XX”, lembrou Sarah Harper, especialista em demografia e fundadora do Instituto para o Envelhecimento da População naquela prestigiada universidade britânica.
Para a professora de Oxford, há toda uma revolução à espera de ser feita, por exemplo, no campo da interdisciplinaridade: “As universidades têm mesmo de mudar para este conceito, em vez de ser cada professor a dar a sua disciplina. Até agora isto não passou da conversa.” Mas também ao nível dos alunos, já que estes passarão a ser cada vez mais responsáveis pelo seu processo educativo, de uma forma quase feita à medida, antecipa.
Outra das transformações em curso e em debate no V Encontro Internacional de Reitores prende-se com o facto de a universidade já não poder ser a instituição por onde se passa num período de vida, tipicamente aos 20 anos, e aonde não se volta. “A capacidade do ser humano de aprender ao longo da vida é fantástica”, frisou Núria Oliver, vice-presidente da ELLIS — European Laboratory for Learning and Intelligent Systems, organização sem fins lucrativos para a promoção da inteligência artificial. E num mundo em acelerada revolução tecnológica o regresso à formação é cada vez mais essencial.
Até porque, ao contrário de revoluções anteriores no mercado de trabalho, a atual, decorrente da automação e do desenvolvimento da inteligência artificial, está a ter impacto sobretudo nas profissões mais qualificadas, da medicina à advocacia, passando pelas indústrias criativas, lembrou ainda Núria Oliver. Ora, são estes os estudantes que as universidades têm à sua frente e é preciso que percebam que são eles que vão ser afetados pelas mudanças.
Cursos curtos e um novo ensino
Oferecer formações curtas, flexíveis, que garantam a atualização ou mesmo reconversão de conhecimentos de pessoas que já estão no mercado de trabalho e garantir que durante o curso são trabalhadas outras competências são dois pilares fundamentais do ensino superior dos dias de hoje, acreditam os especialistas.
Literacia em software e programação, capacidade de trabalhar em equipas heterogéneas, de diferentes áreas e com diferentes culturas, em ambientes simultaneamente online e presencial, conseguir ter uma visão holística dos problemas e capacidade para ter acesso e controlar a informação foram algumas das competências imprescindíveis apontadas por Oliver de Weck, professor do programa Apollo de Astronáutica e Sistemas de Engenharia do MIT, nos Estados Unidos.
Tudo isto lado a lado com a inteligência artificial e os avanços na área dos modelos de linguagem de grande dimensão (Large Language Models), capazes de forma cada vez mais aperfeiçoada de entender a linguagem humana e recriá-la em forma de textos, imagens ou linhas de código, com uma capacidade de análise quantitativa e velocidades fora do alcance de um simples humano.
Os desenvolvimentos suscitam espanto mas também receios. E uma das mensagens mais ouvidas assenta sobre a necessidade de regulação deste ‘admirável mundo novo’ da inteligência artificial. “Se tudo o que lançamos no mercado tem de ser regulado e avaliado previamente, como os medicamentos ou os edifícios, como não haveríamos de fazer isso com coisas que têm controlo sobre as nossas vidas, que são capazes de manipular”, questionou Núria Oliver.
O V Encontro Internacional de Reitores terminou com a assinatura da Declaração de Valência, em que os dirigentes do ensino superior se comprometeram a fazer as mudanças necessárias para garantir que a universidade irá continuar a ser capaz de responder aos desafios sociais, ambientais e económicos que se colocam ao mundo atual. Da parte do Santander ficou a garantia de investir mais €400 milhões no apoio a universidades, empregabilidade e empreendedorismo entre 2023 e 2026.
O encontro dos reitores
Na sequência das conversas preliminares com reitores nacionais e internacionais, o Expresso associou-se ao Santander para o V Encontro Internacional de Reitores Universia, em Valência, iniciativa que juntou cerca de 700 líderes universitários durante os dias 8, 9 e 10 de maio. “Universidade e Sociedade” foi o tema deste evento global, que contou com a ministra do Ensino Superior, reitores e presidentes dos politécnicos portugueses.
Textos originalmente publicados no Expresso de 12 de maio de 2023
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