Está a nascer um novo mercado dentro do sistema elétrico nacional onde os consumidores vão ter um papel mais ativo e ser pagos pelo serviço prestado. Chama-se mercado local de flexibilidade das redes de distribuição, no qual é “pedido” aos consumidores — indústrias, empresas ou grupo de habitações — que consumam menos eletricidade num determinado período de tempo predefinido e, em troca, recebam um valor pela disponibilidade que apresentaram.
O projeto — chamado FIRMe — está a ser desenvolvido pela E-REDES, que gere as redes de distribuição de eletricidade de baixa tensão, ou seja, as que levam a eletricidade às casas, empresas e indústrias, e que quer lançar, já este verão, o primeiro leilão para encontrar esses consumidores. Aliás, na plataforma digital da empresa britânica Piclo, com a qual tem uma parceria, já estão inseridas oito zonas de Portugal onde há necessidades mais urgentes e 13 consumidores registados. Contudo, como se trata de um primeiro teste ao mercado, Pedro Godinho Matos, um dos mentores deste projeto na E-REDES, não descarta a hipótese de o leilão ficar vazio. Se assim for, “temos de reformular algumas coisas para ver como atrair propostas”.
Metas e vantagens
Um dos objetivos deste mercado é evitar ou resolver de forma mais rápida qualquer constrangimento que possa surgir na rede, seja ele fruto do dia a dia — por exemplo, por haver um pedido de ligação de um novo cliente cujo consumo venha sobrecarregar a infraestrutura — ou porque há um evento climático que provoca uma falha elétrica, seja porque, com a descarbonização, vá haver mais casas, empresas e indústrias a usar eletricidade, mais carros elétricos a carregar, mais edifícios com painéis solares, mais produção através de renováveis e até armazenamento de energia. É que até agora, para resolver constrangimentos, a E-REDES recorria à solução tradicional: construir mais redes e/ou substituir as antigas por redes inteligentes. Obras que demoram a fazer, porque, como são pagas por todos na conta da luz, têm de ser aprovadas pelo regulador e pelo Governo, explica Pedro Godinho Matos. Com este mercado de flexibilidade local “conseguimos cortar ou adiar alguns investimentos”, explica. “E conseguimos solucionar constrangimentos de forma mais rápida”, acrescenta Rui Bento, também da empresa que gere as redes de distribuição de eletricidade.
Para ambos — que estiveram na conferência que a E-REDES organizou na semana passada sobre este tema e à qual o Expresso se associou — estas são duas das principais vantagens deste novo mercado de flexibilidade. Mas é também uma forma de “mostrar ao consumidor que pode ser parte do sistema e participar”, diz Filipe Pinheiro, da Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), e “um novo nível de liberdade dos operadores de rede”, considera Pedro Carvalho, do Instituto Superior Técnico (IST). Contudo, como diz o presidente da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), Pedro Verdelho, este mercado não é natural, foi criado, e por isso tem outras exigências.
O que falta fazer
Do lado da ERSE, é preciso alterar o quadro regulatório de forma a permitir a criação deste mercado e a realização dos leilões, e um dos primeiros passos foi dado esta semana, mais precisamente na terça-feira, 28 de março, com a colocação em consulta pública, até 15 de maio, da Revisão Regulamentar do Sector Elétrico. Do lado da E-REDES, um dos trabalhos a fazer é definir bem a forma e os valores a pagar aos consumidores. Porque “a maior dificuldade que temos visto é arranjar consumidores que estejam dispostos a ceder a disponibilidade de consumo”, nota John Bayard, da Piclo. Ou seja, “as recompensas têm de ser atrativas”, diz Ricardo Bessa, do INESC-TEC, mas têm de ter um teto máximo e este ser mais baixo do que a alternativa, que é fazer o investimento, repara Pedro Carvalho, do IST. De acordo com Pedro Godinho Matos, o valor a pagar “vai depender do produto de flexibilidade que o consumidor irá fornecer”, porque está previsto haver “esquemas de remuneração diferentes”, ou seja, pode ser um valor fixo mensal, variável ou uma combinação de ambos, “o que provavelmente será a maioria dos casos”.
Como funciona
Os detalhes ainda vão ser ajustados, confirma Pedro Godinho, mas, segundo um dos exemplos inseridos na plataforma da Piclo, numa zona específica de Beja a E-REDES precisa de reduzir um total de 300 kW de consumo de eletricidade entre 1 de abril e 31 de maio de 2024, sendo que essa redução só seria feita nos dias úteis, durante um máximo de 45 minutos e entre a meia-noite e as 8h00. Os interessados inscrevem-se na plataforma, seja um consumidor único ou um grupo de consumidores, isto porque vai haver agregadores para juntar clientes, principalmente residenciais, porque têm menor consumo individualmente. E, quando for o leilão, fazem ofertas para o período em que podem reduzir o consumo, sendo que, neste caso, em vez de ganhar a oferta mais alta, ganha a mais baixa.Se fizer match, um pouco à semelhança de uma aplicação de encontros amorosos, faz um contrato com a E-REDES para o período já definido e pelo valor oferecido no leilão. Por exemplo, “se for um contrato variável e forem reduzidos 300 kWh, o benefício a receber será o valor oferecido no leilão multiplicado pela quantidade de energia, ou seja, se tiver feito uma oferta em que está disposto a receber €100 por megawatt hora e for ativado para os 300 kWh, receberá €30 de cada vez que reduzir o consumo, que podem ser “algumas horas por ano ou por vários anos”, explica Pedro Godinho Matos.
Depois é só começar a reduzir o consumo, sendo que a E-REDES faz o pedido com antecedência, mas, num futuro próximo, será tudo digital, através de aplicações que emitem aviso e reduzem o consumo, sem o cliente ter de fazer nada, remata Pedro Godinho Matos.
Os países que já adotaram este mercado
Reino Unido é o país da Europa mais avançado neste mercado local de flexibilidade. Começou a ser criado em 2017, e desde então já foram realizados vários leilões. Só na plataforma da Piclo, entre 2019 e 2021, foram feitos mais de seis mil pequenos leilões, contratados mais de 500 MW a um valor total de 40 milhões de libras (cerca de €45 milhões). Itália é outro dos países onde o processo está a andar de forma célere. Já foram identificadas zonas onde há mais necessidades — Veneza é uma delas — e os primeiros leilões estão previstos para o verão de 2023, diz Serena Ciannoti, da Enel, a empresa italiana de produção e distribuição de eletricidade e gás. Em França há leilões desde 2020, ainda que alguns tenham ficado vazios, mas o objetivo é continuar, porque, segundo Hubert Dupin, da Enedis, a gestora da rede de distribuição de eletricidade francesa, “a flexibilidade é a mais eficaz e a melhor solução custo-benefício a ser implementada”.
Redes
E-Redes, empresa responsável pelas redes de distribuição que levam a eletricidade às casas e empresas, organizou uma conferência sob o tema “Acelerando os serviços de flexibilidade nas redes de distribuição de eletricidade”, a que o Expresso se associou. Veja todo o evento no Expresso online.
Textos originalmente publicados no Expresso de 31 de março de 2023
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