Falta de casas para a classe média “vai agravar-se”
A jornalista Ana Peneda Moreira moderou dois debates, um sobre “O papel do Estado na habitação” e o outro com o tema “Habitação para todos?”. Na conversa desta foto estiveram João Moreira, Hugo Santos Ferreira, Pedro Vicente e David Mourão Ferreira
Ana Brígida
Debate: custo dos terrenos, burocracia legislativa e impostos estão a levar os privados a desistir ou a colocar em pausa os projetos que tinham de habitação a preços acessíveis. E nem as medidas do Governo parecem ajudar
Ana Baptista
Um dos principais motores da crise que se vive atualmente na habitação deve-se à escassez de oferta para a classe média. Ou porque não há casas disponíveis, ou porque as que chegam ao mercado a preços mais baixos são logo vendidas, ou ainda porque as que estão à venda têm preços tão elevados que obrigam a taxas de esforço que as famílias não conseguem pagar.
O problema, diz o CEO da promotora Overseas, Pedro Vicente, é que esta escassez “vai agravar-se”. Não tanto pelo tempo que demora a construir um edifício destes, com mais unidades para compensar os preços mais baixos, mas porque, perante os atuais custos de contexto (ver caixa ao lado), “já há vários projetos de vários investidores” a serem colocados em pausa ou mesmo travados, assegura o gestor.
De facto, diz João Moreira, administrador da construtora Ferreira Build Power, “com sucessivas alterações aos planos diretores municipais, a burocracia legislativa e o peso da carga fiscal, é natural que os promotores se desinteressem de fazer esses projetos de maior dimensão, seja para venda ou para arrendamento, porque também é onde se assume maior risco”.
Isto faz com que os promotores optem por se focar em segmentos onde “o risco é menor”, como o do luxo, diz Pedro Vicente, mas “nós andamos sempre atrás da procura e hoje a maior procura é na habitação para a classe média. Não queremos trabalhar só no mercado de luxo”, assegura o presidente da Associação Portuguesa de Promotores e Investidores Imobiliários (APPII), Hugo Santos Ferreira.
Nem as medidas do programa Mais Habitação, apresentado pelo Governo a 16 de fevereiro e que tem como objetivo aumentar a oferta de casas acessíveis, fazem Pedro Vicente alterar a sua visão de que a falta destas casas se irá agravar. Pelo contrário, “o governo está a retirar confiança ao mercado com medidas radicais que tendem a retrair ainda mais a oferta, como o arrendamento compulsivo ou o termo dos vistos gold com efeitos retroativos”, diz. E nas medidas para acelerar os processos “a luta não pode ser feita tratando o licenciamento como se de uma comunicação prévia se tratasse”, porque “as empresas e os técnicos projetistas em geral não estão preparados para este passo. Quem se sujeitará a erguer uma torre de 20 pisos correndo o risco de o município vir dizer mais tarde que considera existir um erro de implantação e, como tal, emitir uma ordem de demolição?”, acrescenta.
Ora, se a falta de oferta se agravar, isso pode fazer com que os preços continuem a subir, e neste momento, segundo dados divulgados pela base de dados Confidencial Imobiliário esta semana, o preço médio de venda das casas no país em fevereiro — que registou uma nova subida (de 1,5% face a janeiro e de 17,1% em termos homólogos) — foi de €2106/m2, o que dá “um valor médio por imóvel vendido de €222.704”. Por isso é que Pedro Vicente recomenda que “nesse segmento da classe média os preços não podem subir muito mais, sob pena de as pessoas deixarem mesmo de comprar”, e neste momento “ainda há algumas famílias a comprar, mas o drama no acesso ao financiamento é enorme e muitas delas, depois de simulações e testes de esforço à sua capacidade financeira, acabam por desistir”.
Até porque, além do preço da casa, as famílias são ainda muitas vezes surpreendidas com os impostos que têm de pagar, repara David Mourão Ferreira, diretor de Novos Empreendimentos da ERA Imobiliária. Impostos esses — como o IMT, que pode ir até 7,5% do valor da casa, e o imposto do selo, que pode ir até 0,8% — que deviam acabar, porque “até a OCDE já disse que impedem a mudança de casa”, nota Hugo Santos Ferreira.
O papel do Estado
No geral, promotores e Governo concordam que o papel do Estado na habitação tem duas frentes. Uma delas é a habitação social para as famílias de rendimentos mais baixos ou que vivam sem condições condignas ou que não tenham casa. E a outra é criar condições — legislativas e fiscais — que sejam indutoras do investimento privado em habitação para a classe média. Ou “ser promotor de melhoria dos instrumentos para garantir que o investimento privado é também ele canalizado para as necessidades da população”, como referiu a ministra da Habitação, Marina Gonçalves, no último dos debates organizados pela ERA Imobiliária.
E é nesta segunda frente que a APPII, que representa os promotores, entende que o Governo “não está a fazer o suficiente”, nem mesmo com as medidas do programa Mais Habitação, que foi ontem aprovado, em parte, em Conselho de Ministros, e que diz ser um plano de “conceitos que minam a confiança de quem ainda pensava investir”. E se há coisa que os investidores procuram é estabilidade legislativa, remata Hugo Santos Ferreira.
No que toca à parte social, há menos atritos. Fernando Angleu Teixeira, presidente da Gebalis, diz que é preciso mais oferta, porque, só em Lisboa, “temos seis mil pessoas na lista de espera de casas de renda apoiada”. E no país todo “só cerca de 2% é que são habitação social e deviam ser 5%, ou seja, temos cerca de 120 mil casas e devíamos ter cerca de 300 mil”. Posição partilhada por Marina Gonçalves, que diz que o objetivo é precisamente “reforçar” essa oferta. Mas é também preciso recuperar as casas existentes, que são “um património muito antigo” e cujas obras “custam muitos milhões de euros”, alerta o presidente da Gebalis.
A ministra da Habitação, Marina Gonçalves, fez o encerramento
Ana Brígida
O que afasta o investimento
Burocracia e licenciamentos
Há promotores que esperam anos para obter uma licença e “uma casa presa no licenciamento durante três anos pode custar mais €100 mil”, diz Hugo Santos Ferreira, para quem o passo certo é “mudar a legislação que regula o licenciamento urbanístico, que data de 1951”. E o problema não é só nas autarquias, que até estão mais céleres graças à digitalização, diz o presidente da câmara de Braga, Ricardo Rio. “Muitos dos processos urbanísticos têm de passar pelo crivo de entidades externas ligadas ao Estado central que têm tempos de resposta absolutamente anacrónicos.”
Impostos altos
O IVA cobrado na construção é de 23%, um custo que é do promotor mas que, tal como o custo dos atrasos nos licenciamentos, passa para quem compra a casa. Os promotores defendem uma redução para 6%, como na reabilitação urbana.
Terrenos e materiais mais caros
João Moreira diz que sempre que as autarquias alteram os PDM, reduzem os terrenos disponíveis para construção, o que faz encarecer os preços. Os materiais de construção também estão mais caros, por causa dos constrangimentos criados pela pandemia e pela guerra. Até a sustentabilidade “tem elevado o custo de construção”, repara, o que depois também passa para o consumidor. “As casas licenciadas a partir de 2021 são completamente diferentes ao nível tecnológico. A legislação obriga-nos a ter certificação A, o que obriga a um investimento muito superior em equipamentos. Essas casas têm soluções térmicas muito mais avançadas”, diz.
O FUTURO DA HABITAÇÃO
O Expresso e a Era Imobiliária organizaram, nos últimos três meses, seis debates sobre o futuro da habitação e do imobiliário em Portugal. “Comprar casa em 2023”, “Literacia para a habitação”, “Sustentabilidade no imobiliário”, “Desafios da mediação imobiliária”, “O papel do Estado na habitação” e “Habitação para todos?” foram os seis temas em cima da mesa.
Textos originalmente publicados no Expresso de 17 de março de 2023
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