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Mais do que dinheiro, saúde precisa de melhores gestores

Melhoria das condições de trabalho e mais organização no sistema é a receita dos peritos e o que os manifestantes reclamaram no Dia Mundial da Saúde
Melhoria das condições de trabalho e mais organização no sistema é a receita dos peritos e o que os manifestantes reclamaram no Dia Mundial da Saúde
Getty Images

Estratégia: Orçamento do Serviço Nacional de Saúde aumentou na última década, mas desafios crónicos mantêm-se. Relatório de peritos defende mais estabilidade, mais autonomia e melhor articulação de recursos para garantir sustentabilidade do sector

Francisco de Almeida Fernandes

Todos os anos o apelo vindo de todos os quadrantes políticos repete-se na altura de desenhar o Orçamento do Estado para os 12 meses seguintes: mais dinheiro para o Serviço Nacional de Saúde (SNS). Desde 2013, o Estado tem vindo a engrossar a disponibilidade financeira nesta rubrica, tendo aumentado a despesa total do SNS de €8,9 mil milhões para €12,4 mil milhões em 2021 — para o próximo ano o Governo prevê €14,8 mil milhões. Porém, aponta o médico Álvaro Beleza, este crescimento não tem permitido resolver problemas crónicos no sector. “O orçamento na saúde nos últimos anos aumentou brutalmente”, diz, enquanto sublinha que “não é por ter aumentado que as coisas se resolveram e melhoraram assim tanto”.

Os tempos de espera, agravados em consequência da pandemia, mantêm-se elevados, a falta de recursos humanos agudiza-se e são mais de um milhão os cidadãos sem acesso a médico de família. Ainda assim, o também presidente da SEDES e diretor do Serviço de Imuno-Hemoterapia do Hospital de Santa Maria recusa uma visão catastrófica, referindo que existem algumas melhorias, mas acredita ser preciso uma mudança de atitude na gestão da saúde em Portugal. “O que me parece que falta é dar mais autonomia ao Ministério da Saúde, isto é, não ser o Ministério das Finanças a governar. Já somos crescidinhos”, critica. A questão do financiamento é, ­aliás, uma das dimensões analisadas pelo relatório da Parceria para Sistemas de Saúde mais Sustentáveis e Resilientes (PHSSR na sigla em inglês), apresentado na quarta-feira, com vários especialistas da área, em Lisboa.

O documento, que lista 43 recomendações deixadas por quatro dezenas de especialistas portugueses, sugere a criação de orçamentos plurianuais no SNS como forma de mitigar o subfinanciamento crónico. Dan Gocke, da London School of Economics, refere que “o horizonte financeiro tem de ser muito mais longo” e afirma que não deve ser condicionado pelos ciclos políticos. “Sabemos que os políticos estão concentrados na resolução dos problemas de curto prazo.”

Menos diagnósticos, mais ação

A par do dinheiro disponível para a saúde, os especialistas defendem uma mudança na forma como os recursos são geridos. Eficiência e racionalidade são duas palavras que descrevem bem a forma como as rédeas do SNS devem ser usadas, mas para que isso seja possível é preciso assegurar autonomia aos gestores, que deve ser acompanhada de responsabilização. Estas questões estão previstas no novo Estatuto do SNS, aprovado em setembro, que garante melhor articulação dos serviços por via da criação da figura de diretor-executivo do SNS, ocupado por Fernando Araújo. O normativo vem permitir, por um lado, que os hospitais possam contratar de forma autónoma os seus profissionais, e, por outro, tirar o Ministério das Finanças da equação em investimentos que tenham de fazer até €2,5 milhões.

E esta é, para a ex-ministra da Saú­de Maria de Belém Roseira, uma questão fundamental. “Quero menos política partidária na forma como se no­meiam as pessoas [que estão à frente do sistema]”, afirma. A valorização dos recursos humanos é vista como essencial para reter profissionais de saúde no sector público, que “têm de ser bem geridos e motivados”. A receita implica a melhoria das condições de trabalho a nível salarial, no que respeita ao aumento do tempo que os clínicos têm para investigação e na melhor organização do sistema. “As pessoas estão esmagadas com a assistência”, sublinha Maria de Belém.

Por isso é também importante que a articulação entre as diferentes estruturas da saúde — entre hospitais e centros de saúde, mas também entre público, privado e social — seja concretizada sem atrito. As vantagens são claras, consideram os peritos: tempos de espera mais curtos, menos cenários de urgências sobrelotadas e melhores indicadores de saúde na população. Tendo como base a análise da situação de mais de duas dezenas de países que fazem parte da iniciativa internacional PHSSR, o investigador Dan Gocke diz que existe “falta de alinhamento entre cuidados primários e hospitais” em Portugal e aponta que, lá fora, “os sistemas de saúde mais acessíveis têm uma voz de comando clara”, com forte capacidade de coordenação de recursos.

Maria de Belém considera que o ­diagnóstico dos obstáculos do sector está feito há muito tempo e que o “problema não é [saber] o que é preciso fazer”, mas sim “como o fazer e que competências trazer para o SNS para que essas coisas aconteçam”. O objetivo final do relatório apresentado pela PHSSR, coordenado em Portugal pelo Instituto Superior Técnico e pelo ISEG, é partilhar as 43 recomendações com os decisores políticos para que as medidas sejam implementadas. Álvaro Beleza vinca que “é bom que o Governo as leia e que as tente implementar”, até porque, reforça, é preciso que o país saiba aproveitar as oportunidades geradas com a pandemia, como o financiamento trazido pelo Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e a aceleração da digitalização, para “melhorar” e tornar “o sistema mais resiliente”. Portugal tem agora um diretor-executivo do SNS com provas dadas à frente do Hospital de São João, tem dinheiro para investir no sistema com o PRR e um novo ministro da Saú­de. Falta agir e transformar o sector.

O DEBATE DOS PERITOS: para os especialistas em saúde é essencial garantir maior autonomia das instituições e dos gestores, mas também maior estabilidade na definição de políticas. No debate participaram Maria do Rosário Zincke (Plataforma Saúde em Diálogo), Maria do Céu Machado (Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa), António Araújo (Centro Hospitalar Universitário do Porto), Maria de Belém Roseira(ex-ministra da Saúde) e Álvaro Beleza (SEDES)
Nuno Fox

Ideias-chave do evento são estratégia para SNS

Motivar os profissionais

Valorização Especialistas defendem revisão das carreiras na saúde para atrair e reter recursos no sector público. António Araújo, do CHUP, diz que “há uma quantidade enorme de médicos que se vão reformar” no interior do país e que, com as atuais condições, “ninguém quer ir para lá”.

Prevenir para não remediar

Mais articulação Maria do Rosário Zincke, da Plataforma Saúde em Diálogo, defende maior envolvimento das associações de doentes na prevenção junto da população e justifica que estas entidades “podem desempenhar um papel fundamental”.

Inovação terapêutica

Menos burocracia Atrair mais ensaios clínicos é essencial para melhorar os cuidados de saúde, mas para isso é preciso reduzir os tempos de aprovação. Maria do Céu Machado, presidente da SCML, aponta que o país demora “seis meses” a aprovar enquanto a Bélgica demora “um mês”. Peritos pedem maior aposta nesta área.

43 recomendações

Sete domínios analisados por 37 especialistas resultaram na apresentação de 43 recomendações da Parceria para Sistemas de Saúde mais Sustentáveis e Resilientes (PHSSR). O evento, a que o Expresso se associou, é parte de uma iniciativa internacional liderada pela London School of Economics, o Fórum Económico Mundial e a AstraZeneca.

Textos originalmente publicados no Expresso de 9 de dezembro de 2022

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