Mais do que o VIH, o estigma é hoje encarado pelos especialistas desta área como uma ameaça séria à saúde pública. Manifesta-se de várias formas e em diferentes contextos, do trabalho ao seio familiar, mas assume-se como um dos obstáculos à prevenção da infeção e, sobretudo, ao tratamento atempado. “O estigma é, ainda hoje, um fator importante associado à não adesão e ao abandono da terapêutica”, contextualiza Vítor Duque, diretor de infecciologia do Hospital de Coimbra. Apesar de reconhecer que o peso é, atualmente, menor em comparação com aquilo que acontecia nas décadas de 80 e 90, o médico não tem dúvidas de que há ainda caminho a fazer para que a sociedade encare o VIH de forma natural.
Olhar para o vírus como se de uma doença crónica se tratasse, como a hipertensão ou a diabetes, não significa retirar importância aos comportamentos preventivos, mas antes dar um passo em direção à não discriminação de quem com ele vive. Cláudia Dias, 43 anos, é uma entre as mais de 60 mil pessoas com um diagnóstico positivo em Portugal e considera que a informação é a melhor forma de perceber que “o VIH não é nada daquilo que ouvíamos falar nos anos 80”. Quando surgiram os primeiros casos conhecidos, a mensagem transmitida à opinião pública era de alarme, por não existir, à época, terapêutica eficaz para o tratamento da infeção. A morte era um cenário certo. Com os avanços da ciência e da medicina, testar positivo para o vírus já não é, há muitos anos, uma sentença de morte. “As coisas estão evoluídas. Com o tratamento podemos viver muitos anos e com saúde, desde que aceitemos o diagnóstico e nos tratemos”, aponta Cláudia Dias.
Mas para que mais pessoas conheçam o seu estado serológico e evitem comportamentos de risco, os especialistas defendem ser fundamental que a sociedade perceba que “esta é uma doença de todos” e não apenas de alguns. “Esta doença nunca foi nem dos toxicodependentes nem dos homossexuais. Toca a todos”, sublinha Luís Paiáguas. Aliás, os dados oficiais da Direção-Geral da Saúde não deixam margem para dúvidas — em 2019, o último ano em que há registo de novos diagnósticos, 97,3% dos casos detetados tiveram origem em relações sexuais e, destes, 57,8% corresponde a contactos heterossexuais. “Sou seropositiva. Mas o VIH não é o fim. Ainda há muito analfabetismo sobre este assunto”, acredita Cláudia Dias.
Precisamente para contrariar o estigma e a desinformação, o Grupo de Ativistas em Tratamentos (GAT) lançou, este mês, uma campanha inédita em Portugal que juntou dez pessoas infetadas que fizeram questão de o assumir publicamente. Cláudia, Luís e Emanuel Caires são três dos dez rostos que querem lutar por uma sociedade mais justa e, sobretudo, menos discriminatória. “Há uma coisa sobre a qual temos de ser claros: todos podemos estar em risco se tivermos comportamentos de risco”, reforça Vítor Duque.
Quando a exclusão se sente na pele
A discriminação manifesta-se em atos ou palavras que têm origem no estigma. No caso de Cláudia, partilhar a sua condição de saúde com colegas do restaurante onde trabalhava, em Lisboa, resultou na perda injustificada do emprego. “A patroa veio falar comigo e disse-me que ela já tinha sido operada à tiroide e que, por isso, não ia dar para continuar a trabalhar ali”, recorda. Sentiu que tinha sido vítima de discriminação, mas ainda assim aceitou assinar a carta de rescisão, perdendo o direito a subsídio de desemprego. “Mas no dia a dia aceito a minha condição e falo com as pessoas sobre isso porque acho que é importante normalizar”, diz. Com Emanuel, homossexual e natural da Madeira, o impacto foi sentido dentro de casa logo após o diagnóstico e enquanto lutava contra uma depressão. “A minha mãe apoiou-me muito, mas o meu pai não. Não falamos há muitos anos”, lamenta. “Antes de vir para Lisboa telefonei-lhe e pedi-lhe que nos encontrássemos, mas ele disse-me que não tinha nenhum filho com o meu nome.” Até hoje, 11 anos depois do diagnóstico, a relação mantém-se cortada.
Além do pai, Emanuel foi atacado, de forma anónima, com mensagens ameaçadoras acusando-o de estar a espalhar VIH. “Sentia-me como se estivesse sempre a ser vigiado. Isto tem graves consequências na qualidade de vida das pessoas com VIH, senti isso na minha própria pele”, afirma.
Ricardo Fernandes, diretor executivo do GAT, fala numa forma de discriminação perpetuada pelo Estado no acesso às Forças Armadas. “Continuam a não recrutar pessoas com VIH e a discriminá-las sem qualquer base científica”, critica. Receios sobre a transmissão do vírus são, em grande medida, injustificados desde que esteja reunida uma condição fundamental: a fórmula I=I, indetetável igual a intransmissível. Esta pode ser uma forma de diminuir o estigma em relação ao VIH, já que significa que quando o portador está em tratamento e o vírus não é detetável é possível viver uma vida normal, manter relações sexuais como qualquer outra pessoa e não transmitir a infeção.
Luís Paiáguas tem um passado marcado pelo consumo de drogas injetáveis que lhe trouxe o vírus e atualmente, depois de se ter reabilitado nos anos 90, trabalha no serviço de apoio domiciliário da associação SER+, que apoia utentes com VIH. Partilhar a sua história com outras pessoas que vivem com o diagnóstico “tem sido uma mais-valia” para garantir a adesão à terapêutica e mostrar que é possível, como no seu caso, viver quase 30 anos sem qualquer consequência na qualidade de vida. “Muitas vezes as pessoas estigmatizam-se a elas próprias. Ouviram a história da sida nos anos 80, de que íamos morrer todos, e fecham-se”, explica.
Foi o que sentiu Emanuel na sua vida amorosa. “Senti-me totalmente perdido, havia muita pressão sobre como iria abordar a questão [com um novo parceiro]. Era muito desgastante”, reconhece. Durante três anos não foi capaz de entrar num relacionamento. Com apoio psicológico e de amigos, decidiu “tornar público” o seu estado serológico para ajudar “pessoas que não o conseguem fazer por medo de serem violentadas”. “É preciso quebrar o estigma”, reforça.
“Grandes expectativas” para o SNS
As recentes nomeações de Margarida Tavares, como secretária de Estado para a Promoção da Saúde, e de Fernando Araújo, como CEO do Serviço Nacional de Saúde, motivam aos especialistas em VIH “grandes expectativas”. Ricardo Fernandes, diretor do Grupo de Ativistas em Tratamento (GAT), diz que ambos têm “bastantes competências para melhorar várias áreas da saúde, nomeadamente a do VIH”, pelo trabalho que, ao longo dos últimos anos, desenvolveram no combate à epidemia — Margarida Tavares como líder do Programa Nacional para as Infeções Sexualmente Transmissíveis e VIH e Fernando Araújo como líder do São João. Um potencial entrave à resolução célere dos principais desafios dos doentes e dos profissionais serão os recursos financeiros. “Não se fazem omeletes sem ovos”, avisa o responsável do GAT. Entre as prioridades, os peritos destacam a implementação de um acesso facilitado à profilaxia pré-exposição (PrEP), apontada como essencial para a prevenção, e o restauro do SI.VIDA, sistema de registo de infeções VIH, que não funciona desde o início da pandemia. “É um instrumento importantíssimo para os indicadores clínicos e epidemiológicos, mas também para o financiamento dos hospitais”, explica Vítor Duque, diretor de Infecciologia no Hospital de Coimbra, onde o sistema continua sem funcionar. As consequências são claras: desde 2020 que Portugal não tem dados nacionais sobre o número de novas infeções, prejudicando a prevenção e o tratamento. “Não havendo sistema, temos apenas registo das consultas e pouco mais”, lamenta.
OS NOVOS DESAFIOS DO VIH
Nos próximos meses, o Expresso — com o apoio da ViiV Healthcare e as principais associações de doentes na área do VIH — cria um conselho consultivo para pensar as principais prioridades políticas, médicas e sociais nesta área. A estrutura produzirá recomendações e apontará caminhos para melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde e a qualidade de vida dos doentes.
Textos originalmente publicados no Express de 30 de setembro de 2022
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