Geração E

O papel estrutural da amizade

O papel estrutural da amizade

Clara Não

Ilustradora, ativista, autora

A amizade partilhada entre pessoas com vivências comuns não é algo acessório na vida, é antes essencial, estrutural. Vemos a nossa intimidade emocional e física empurrada para relações amorosas, como se estas fossem a única forma de termos o colo físico e emocional que precisamos

O mundo continua a organizar-se por casais, quer sejam hetero ou homossexuais. Quando saí de casa dos meus pais e fui morar com amigos, fez confusão a muita gente da vila: “se ela não se vai juntar com alguém, para quê sair de casa?” Quando me mudei para Lisboa, sozinha, ainda mais confusão gerou. “Sim, sou só eu, vou viver sozinha”, dizia eu. Houve quem insistisse “Mas não tens mesmo um namorado? Vais mesmo viver sozinha?”. Parece que “ser sozinha” é uma condenação tão grande que merece o verbo ser.

A minha vida amorosa nunca foi muito estável, embora esteja em paz com (quase) todas as pessoas do meu passado. Acredito, mesmo, que ficar presa em situationships é um mal geracional urbano.

Situationship: relação a que não se chama relação, mas que contém todo o drama, ou mais, do que uma relação, não havendo permissão para haver vulnerabilidade emocional.

Atribuo a existência desta vaga de relações-não-relações à constante instabilidade das nossas vidas – emprego instável, trabalho precário, especulação imobiliária –, havendo uma migração desta incerteza para todas as áreas da vida. Estamos todas e todos sedentos, de uma forma geral, de colo emocional e sexual, mas temos receio de nos sentirmos presos num mundo em constante movimento: em vez de sentirmos esse colo como um casulo de estabilidade, vemos uma possível relação como uma incoerência em relação ao mundo. Curioso, não é?

Por outro lado, a presença de amizades sempre existiu de forma estável na minha vida, tendo, até, muitas vezes, uma presença mais forte do que a minha própria família.

Há esta ideia de que “família é família”, um elo inquebrável, superior a qualquer outro. Eu e a Anahit Behrooz – autora do excelente livro “BFFs, The Radical Potential of Female Friendship – discordamos: o laço familiar não é inquebrável e as amizades podem ser mais fortes do que qualquer laço familiar. Mesmo sendo o caso, como refere Anahit, não há legislação que atribua aos amigos mais chegados quaisquer direitos legais, mesmo que se partilhe casa e se viva em comunidade: não há palavra legal para isso, não há designação legal com direitos.

“Só são permitidas visitas de familiares”. Nunca se ouve “só pode visitar se for familiar ou melhor amiga companheira de vida”. Até parece, à primeira vista, infantil, não é? Mas por que razão ter uma ligação tão forte com uma amiga/um amigo pode ser infantil, quando exige dedicação, amor, entrega?

Mesmo olhando para as relações monogámicas estáveis, é importante haver uma rede de amizade que se saiba que sobrevive na eventualidade da relação acabar. Porque, se tal acontece, com que rede de apoio ficas? Com quem podes desabafar com confiança sobre a relação que estás a viver?

Acima de tudo, a pergunta é: quem são as tuas pessoas? As pessoas com quem queres partilhar a tua vida, com quem podes contar, a tua rede de segurança, o teu alicerce emocional. Sugiro até que façam uma lista de pessoas: quem está lá para ti quando o trabalho corre mal, a relação está esquisita e a tua família não te compreende?

Defendo que esta intimidade emocional e até física não romântica da amizade, mas não deixando de ser amor, é essencial à estabilidade da vida. (Até porque, sejamos francos, a maior parte das vezes, é mais provável que a relação amorosa em que estás acabe, do que as tuas amizades que já tinhas antes da relação se desfaçam.) Mesmo assim, esta intimidade física é pouco falada, é-lhe dada pouca ou nenhuma importância. Anahit Behrooz dedica-lhe um capítulo inteiro, onde começa por comentar os artigos nas revistas sobre o futuro da intimidade, no tempo de isolamento, consequente da COVID-19:

“(...) dozens of articles shared across tabloids and art magazines and lifestyle websites alike, all asking the same thing: what would happen to the world of sex, dating, and relationships in this brave new world? (...) There was, of course, very little consideration for how people who depended on physical comfort from their friends would manage. That kind of touch that wasn’t erotic, or romantic, or heteronormative, had already long been deemed disposable.” (pág. 38).

A intimidade física não tem de começar e acabar em casal, nem deve. Há mais vida para lá disso, há amizades estáveis que existiam antes, que são a nossa rede de apoio, que são o nosso abraço. Nem toda a intimidade física é sexual ou romântica no sentido lato de romance.

Neste sentido, dar a importância devida às amizades que suportam a nossa estabilidade emocional, que apaziguam o movimento frenético do mundo, é também um ato de emancipação face à forçosa organização da sociedade em casais. A verdade é que fomos tão criados pela nossa família – para quem teve o privilégio de ter uma família presente –, como pelos nossos amigos, em comunidade. Desenvolvemos gostos, desenhamos objetivos.

Assim, há amigas e amigos que até estão acima da sua designação: são as nossas pessoas. Anahit Behrooz divide as amizades, de uma forma cómica e perspicaz, em dois grupos: errand friendships e brunch friendships. Na primeira, não há cerimónias: as amigas vão juntas fazer recados, vivem momentos da vida em conjunto. Na segunda, a presença das amigas funciona como um intervalo da vida, uma cerimónia que se faz para estar com aquela pessoa e pôr a conversa em dia. (Claro que há possibilidade de conjugar as duas). A grande diferença é que a primeira amizade é parte integrante da vida, uma continuação com a presença daquela pessoa, e não uma pausa numa vida que está a acontecer noutro caminho. (pág.71).

Acima de tudo, importa referir que a amizade partilhada entre pessoas com vivências comuns não é algo acessório, é antes essencial, estrutural. Vemos a nossa intimidade emocional e física empurrada para relações amorosas, como se estas fossem a única forma de termos o colo físico e emocional que precisamos. Claro que podemos querer uma relação, mas quem está lá quando ela corre mal? Até podemos encontrar o amor da nossa vida e ficarmos casados imensos anos, mas quem está lá se ficarmos viúvas/os? (E não me respondam “os filhos”, porque isso pressupõe que se quis/pôde ter filhos e que o papel dos filhos é fazer companhia aos pais. As pessoas dão à luz crianças e não auxiliares de saúde ou terapeutas ocupacionais).

Ora, esta crónica é uma ode à amizade adulta, à intimidade na amizade, à criação de comunidade que desafia a estrutura social do mundo.

*

Estávamos na praia da Aguda a falar sobre o futuro. A faculdade largamente atrás de nós há anos e nós a molharmos os pés no mar, perto das rochas. Eu e a minha amiga Ana.

— Porque a amizade também é amor.

— Pois é, eu amo-te.

— E eu também te amo.



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