Era fim-de-semana. O meu vizinho do lado estava a soltar palavrões bem alto, logo de manhã, enquanto jogava um daqueles jogos de tiros. Deitada na minha cama, com um “CÁ PUTA” atrás da parede e uma preguiça no corpo, lembrei-me do livro “How to Stay Sane in an Age of Division” de Elif Shafak.
Necessidade de pertença e o poder da representatividade
Enquanto andamos na escola, há clubes de teatro, xadrez, de matemática, etc. Os gostos que nos distanciam das pessoas da nossa turma, aproximam-nos de outras. Continuamos com as nossas amizades de turma, mas acrescentamos novas, dentro do contexto do clube, explorando facetas diferentes do todo que somos.
Na vida adulta, vemos essas atividades transpostas para diferentes grupos de amigos e diferentes tipos de confidência. Continuamos a precisar de encontrar representatividade em algo muito mais importante do que simples gostos: nas histórias de vida. “Stories bring us together, untold stories keep us apart.” (Shafak, pág. 9).
Mesmo na era das redes sociais, em que podemos tornar o nosso feed um local de representatividade, há muita vergonha. Queremos parecer trendy, modernas, responsáveis, mas ao mesmo tempo soltas. Onde fica o nosso verdadeiro eu no meio disto tudo? O que é o nosso verdadeiro eu, sequer, no meio disto tudo? Assim, por vergonha, por termos medo de sermos julgadas, por termos medo de sermos postas de parte dos grupos a que já pertencemos, não contamos a nossa história. Temos medo de não sermos ouvidas, de não nos compreenderem, de sermos postas de parte.
E tudo o que o ser humano mais quer é pertencer. Se este auto-silenciamento for recorrente, o nosso coração aperta e a nossa essência esconde-se. Ora, tal não acontece só na esfera pessoal com amigos ou pessoas com quem estamos em relacionamentos amorosos, mas também politicamente: deixamos de reclamar, de nos fazermos ouvir porque “ninguém quer saber”.
As diferentes facetas do nosso “verdadeiro eu”
Todas as pessoas têm muitas facetas do mesmo eu inteiro. É importante que consigamos explorar todos os nossos lados, sem nos pormos em caixas. Uma mulher não é uma chefe menos profissional por gostar de ver Soy Georgina; um homem não é menos forte por saber fazer croché.
Uma forma de explorarmos os nossos diferentes lados é criar diferentes relações de amizade com pessoas distintas, ou até fazer parte de diferentes comunidades tendo em conta os nossos gostos ou contextos — o equivalente aos clubes das escolas.
Por outro lado, nesta procura de pertença do nosso verdadeiro eu, podemos correr os risco de nos forçarmos a pertencer, criando versões de nós que não correspondem à nossa realidade plural: escondemos opiniões, forçamos polarizações, na esperança de também nós fazermos parte do grupo.
Ora, tendo em conta a criação de uma espécie de alter-ego social, vejo estas situações como performatividade social. Butler afirmou que a expressão hegemónica de género binário, feminino e masculino, é performatividade — "Gender reality is performative, which means, quite simply, that it is real only to the extent that it is performed". Neste caso, quando criamos uma versão de nós com o único intuito de pertencer a algo, nasce uma pertença performativa de grupo.
O outro lado da necessidade extrema de pertencer
Quando se procura representatividade numa comunidade, sem nos desviarmos pelo caminho da pertença performativa, corremos o risco de nos limitarmos a querer encontrar pessoas que pensem exatamente como nós. Se afunilarmos esse desejo, criamos bolhas sociais em que as pessoas com que nos rodeamos, seja online ou na vida real, têm a mesma opinião que nós. A estas “bolhas” chama-se echo chambers. Qual a consequência grave? A partir do momento em que estamos nestas bolhas, facilmente rejeitamos outras opiniões que fogem para lá da nossa perspetiva de realidade, parando de ouvir, parando de ter empatia. Shafak vai mais longe e afirma: “The moment we stop listening to diverse opinions is also when we stop learning”. Na verdade, se nos continuam a dizer o que nós já sabemos, nada aprendemos. Se não procurarmos outros lados da mesma questão, não evoluímos.
Desta forma, os echo chambers limitam o conhecimento, impedindo-nos de ter acesso a outras realidades. É também este fenómeno limitador que potencia a polarização de opiniões, típico do “ou estás connosco ou estás contra nós”. Para colmatar esta tendência, Shafak recomenda que nos tornemos nómodas intelectuais, em movimento, em crescimento, resistindo a limitar-nos somente a um grupo.
A meu ver, a crise social atual é a mesmo a falta de empatia, que só é possível com a criação de pontes de diálogo, ao invés do insulto só porque alguém tem uma opinião diferente da nossa. Eu própria já evoluí de opinião ao falar com pessoas de opiniões diferentes, que são capazes de comunicar outros lados válidos da mesma questão.
O paralisante “podia ser pior”
Se de um lado temos a perigosa polarização, do outro temos a inércia do “podia ser pior”. Esta ideia paralisante não nos mostra caminhos melhores, mas antes faz-nos achar aceitável que estejamos na sarjeta, desde que vejamos as estrelas.
Esta expressão de conversa de café não leva a lado nenhum. Não podemos aceitar o que está mal e não basta apontar o dedo: é preciso encontrar soluções. Para tal, devemos informar-nos, criar discussões saudáveis. Ficar deitada a olhar para as estrelas num inerte “olha, podia ser pior”, não adianta nada. A solução para os problemas sociais não está na constelação de Capricórnio. (Se nos deitarmos para descansar e voltar a batalhar, aí é outra história).
No outro extremo, também a pura raiva pode tornar-se incapacitante, como afirma Shafak: ficamos tão chateadas que congelamos. A raiva pode ser um motor para mostrar que algo está mal, mas não pode ser um fim em si.
Nota final
Que a necessidade de pertença nos traga mais partilha de histórias, mais representatividade e menos inércia de quem está na sarjeta e aceita, porque pelo menos consegue ver as estrelas.
Bibliografia:
“How to Stay Sane in an Age of Division”, da ativista e autora Elif Shafak. O livro vai muito mais longe do que as partes citadas nesta crónica, especialmente sobre a questão da Identidade. Aconselho mesmo a leitura. É um pequeno livro da Wellcome Collection, publicado pela editora Profile Books.
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